Após um tempo relativamente longo fui agraciado com uma súbita inspiração e apresento um novo conto.
O estilo dele é um pouco diferente dos outros que costumo escrever, mas acredito que irão gostar.
Boa leitura.
Ainda na
adolescência, quando normalmente as pessoas começam a pensar por conta própria,
Morgana já discordava dos dogmas que lhes eram passados pela avó, que a criara.
Católica
fervorosa, ela acreditava que os ensinamentos bíblicos poderiam sanar todos os
anseios que a neta demonstrava ter, como fizeram com ela, um dia.
Cada um deveria
ter o direito de seguir pelo caminho que julga ser o melhor, sem imposições,
mas esse pensamento não era partilhado pela velhinha. Não que ela fizesse por
maldade, esse era o único caminho que ela conhecia para fazer com que a neta
fosse uma “moça direita”.
Mas havia algo
no íntimo da menina que não aceitava todas aquelas histórias do livro sagrado.
Algumas coisas não pareciam lógicas, não se encaixavam e não respondiam de forma
satisfatória às questões que tinha. Não se tratava de rebeldia, mas sim de
encontrar algo que a completasse, que lhe fizesse bem.
Em busca de algo
que realmente atendesse aos seus anseios, Morgana passou a procurar as
respostas por conta própria.
Morgana, nome de
uma sacerdotisa da ilha de Avalon, segundo os contos do Rei Arthur. Ela parecia
ser predestinada desde que recebera esse nome. A verdade que tanto buscava
encontrar não seria revelada pelos meios “convencionais”.
Enveredou por
caminhos perigosos. Caminhos que a deixaram diante de criaturas terríveis,
fizeram-na lidar com energias obscuras... Mas que ainda não apaziguavam seu
espírito, fazendo-a seguir por outros rumos.
Ao se deparar
com a Wicca ela encontrou a paz que sua alma desejava.
Porém, os
caminhos errôneos que trilhara haviam lhe deixado marcas que ignorava.
Em seus estudos
ela conheceu um tipo de ser que de imediato lhe despertou profunda paixão: o
vampiro.
Na ânsia de se
encontrar com um deles Morgana costumava passar diversas noites em claro, em
frente à sua casa, vendo as estrelas, esperando algum contato. Porém, essa foi
uma busca infrutífera, e ela jamais teve sinal de algum da existência deles.
A vida seguiu
seu curso. Morgana se casou, teve um filho e passou a levar uma vida comum, mas
sem jamais abandonar os rituais que acalmavam seu coração e seu espírito.
Mais de vinte
anos se passaram desde seu primeiro contato com a religião da grande Deusa.
Apaixonada por seu filho, por sua religião e pela vida, ela não tinha maiores
anseios além da paz de espírito que já possuía. Até que em uma única noite tudo
mudou.
O marido e o
filho viajaram e ela passaria alguns dias sozinha.
Isso não a
angustiava, pelo contrário, era a chance de poder se dedicar às práticas comuns
de todo wiccan, sem a necessidade de explicações.
Já era madrugada
e Morgana, após sua integração com a Deusa, dormia tranquilamente. Estava em
paz consigo mesma e com o universo, mas não estava sozinha.
Defronte à sua
cama algo admirava seu belo corpo nu, envolto apenas em lençóis brancos,
entregue ao reino de Morfeu.
Em seus olhos
havia um misto de carinho e desejo. Provavelmente nem ele mesmo saberia
explicar o que sentia.
Mas os instintos
de Morgana, como os de toda wiccan, gritaram alto, fazendo-a acordar.
Aquele que até
então velava seu sono não fez menção alguma de se retirar. Permaneceu ali, de
pé, contemplando seu despertar.
Assim que abriu
os olhos ela o reconheceu. Como? Não saberia dizer, mas de algum modo ele lhe
era familiar, mesmo nunca tendo se encontrado com ele.
Um misto de
surpresa, curiosidade e desejo lhe invadiu a alma.
- O que faz
aqui? – ela se reergueu, cobrindo seu busto com o lençol quase transparente.
- Admirando-a,
bela Morgana.
Ela acendeu as
luzes, mas ele se manteve impassível.
Não era bonito,
como retratavam as diversas obras acerca deles. Ao contrário, suas feições eram
de certo modo grosseiras. Sua pele era extremamente pálida e deixava suas veias
à mostra, num contraste repulsivo. As pupilas amareladas brilhavam como as de
um gato e a cabeça quase careca tinha um ralo filete de cabelos ruivos, uma
espécie de moicano.
Ainda que a
aparência dele fizesse-a sentir vontade de correr, seu olhar e tom de voz a
seduziam. A energia que dele emanava era única. Despertava tranquilidade,
prazer e fúria, uma mistura impossível de estar presente em um humano, não de
uma forma tão intensa.
- Por que agora?
Há anos eu não me conteria de felicidade em me encontrar contigo, mas hoje...
- Se assim
deseja, eu posso me retirar.
- Não, não é
isso, apenas queria entender.
- O que gostaria
de entender, Morgana?
Ele sabia seu
nome, e ela ficou admirada. Não era a toa que ele estava ali.
Amistosamente o
vampiro sentou-se à beira da cama.
- O que o trouxe
até mim? Por que agora?
- Pude ouvir
seus chamados, há certo tempo atrás. Foi impossível manter-me indiferente a
eles.
- E por que não
os atendeu?
- Como sabe que
não fiz isso? Afinal, estou aqui diante de ti, não estou?
- Sim, mas eu o
desejava muito na época, mesmo sem saber quem era, desejava estar contigo mais
que tudo, mesmo assim nunca veio até mim.
- E não deseja
mais?
Ele já sabia a
resposta, seu olhar denunciava isso. Era como se ele conhecesse cada segredo
seu.
Embora durante
muitos anos ela tivesse abandonado a procura pelos vampiros, ainda os desejava.
E mesmo sem ela confessar, ele sabia.
- Sim... – havia
timidez em sua voz.
Um profundo
silêncio se seguiu, como se ambos aguardassem a reação um do outro.
- Mas por que
agora?
- Agora você é
uma mulher, não mais uma garota perdida buscando respostas. Já as encontrou e é
capaz de tomar decisões sem arrepender-se.
Ele tinha razão,
ela amadurecera muito desde as noites insones à espera de um deles. A vida a
fizera amadurecer, o filho, a Deusa... agora ela era outra pessoa, era uma
mulher.
Inexplicavelmente
seus olhos se encheram de lágrimas. Talvez por ele, uma criatura milenar,
reconhecer a mulher que se tornara, valorizá-la e, como era inegável em seu
olhar, deseja-la.
“És capaz de
tomar decisões sem arrepender-se.”
Teria enfim
chegado o dia pelo qual ela, durante tantos anos, ansiou?
- O que deseja
de mim? – a voz de Morgana estava embargada, não por medo. Ela não saberia
explicar o motivo, era como se sua alma quisesse gritar, fugir, não mais
cabendo dentro daquele corpo.
- Se esse for
seu desejo, quero que venha comigo. – os olhos do vampiro estavam fixos nos
dela, como se através daquele olhar ele desvendasse todos seus segredos.
- Por que eu?
Por que agora? – seu espírito gritava para que se atirasse nos braços dele e
assim seguirem até o fim do mundo, mas o pouco de racionalidade que ainda
existia teimava em encontrar explicações.
- Agora você já
cumpriu o seu papel, Morgana. Tem um filho já adulto, criado. Encontrou a paz
que tanto almejava. Hoje você já é capaz de decidir se lhe convém ou não seguir
comigo, como minha companheira. E por que você? Porque a desejo desde que
clamaste por mim, anos atrás. Porém você era uma garota, ainda tinha muito o que
aprender, muitas realizações por conquistar. Agora que já conquistou tudo o que
desejava pode decidir com segurança se vale a pena abrir mão de tudo isso e
seguir comigo. É um caminho sem volta.
Morgana estava
pensativa.
- Por que você,
bela Morgana? Sua beleza só cresceu desde que me chamou. Por dentro e por fora,
mesmo que não tenha consciência disso, você é muito mais bela do que era
naquela época. Hoje você está pronta para mim, e a desejo muito.
Morgana não
sabia o que dizer. Em sua busca pela paz de espírito acreditava não ter mais
dúvidas quanto à vida ou à existência, mas naquele momento percebeu que um novo
horizonte se abria diante dela, que ainda tinha muito o que aprender. Porém,
para trilhar esse novo caminho, ela teria que abrir mão de tudo que realizara,
de tudo que se tornara.
- Não, minha
bela. O que você construiu e o que se tornou jamais se perderão. Seu filho
carrega sua essência, os ensinamentos que passou para ele, e isso jamais será
apagado. Assim como a bela mulher que se tornou. Você carregará essa luz por
onde quer que vá, nada será perdido, tudo o que viveu até aqui não foi em vão.
O imortal a olhava
com carinho, enquanto aguardava sua decisão. Ele já sabia qual seria, caso
contrário não teria ido até ela. Ele a conhecia, mais do que qualquer um.
Seguira cada passo de Morgana desde que ela profundamente desejou se encontrar
com ele.
Porém, havia a
necessidade do consentimento. Ele não poderia força-la a nada, e nem era esse
seu desejo.
- E se eu
aceitar, como será isso? O que terei que fazer?
- Tornarei-a
minha companheira. Serás como eu, e partiremos daqui assim que isso acontecer.
Seu espírito se tornará receptivo a sensações inconcebíveis a um humano.
Perceberá a existência de tal maneira que sua atual condição é incapaz de
compreender.
O vampiro estava
certo: Morgana agora estava pronta.
Sem dizer nada
ela deixou o lençol deslizar por seu corpo nu. Charmosamente jogou a cabeça
para o lado e lhe ofereceu o pescoço.
A calma do ambiente
cedeu então à fúria da mordida transformadora.
Os instintos.
Presentes por séculos eles se sobrepunham a qualquer racionalidade, a qualquer
sentimento. Quando tudo se apaga apenas eles prevalecem, a mais primordial
essência de qualquer criatura, aquela que lhes garante a sobrevivência.
O carinho e a
calma que até então transbordavam do vampiro desapareceram por completo. Num
único movimento ele enterrou seus caninos no aveludado pescoço de Morgana e
sorveu seu sangue, sua essência, como se fossem um néctar divino.
Não, ela não
gritou. Ao aceitar a tentadora oferta sabia o que a esperava.
Um clarão tomou
conta da sua visão e seu corpo estremeceu. Era como se um raio a atingisse.
A luz e o êxtase
subitamente deram lugar ao mais profundo nada. Tudo se apagou.
Quando enfim
despertou, Morgana não sabia por quanto tempo estivera inconsciente, mas era
noite.
Sentiu enorme
alívio ao perceber que não estava sozinha. O vampiro aguardava seu despertar.
Mesmo com as
luzes apagadas ela distinguia cada objeto dentro do quarto. Não sentia frio,
calor ou dor.
Conforme ele lhe
explicara, a existência vampírica era difícil de ser compreendida por um
humano. Agora ela compreendia suas palavras. Tudo estava diferente.
Morgana percebeu
que não estava mais nua. O novo companheiro a vestira com um belo vestido roxo.
Ela o encarou e
sorriu. Estava maravilhada.
- Obrigada.
Em seu semblante
sisudo o vampiro esboçou um sorriso, enigmático e encantador, no mesmo instante
em que lhe estendeu a mão.
Morgana cedeu ao
singelo gesto e pôs-se de pé, sendo conduzida então para a porta.
Ninguém teve
mais notícias dela, a garota simplesmente desaparecera.
Morgana deixara
sua vida mortal, mas em troca recebera a chance de seguir por uma existência
eterna.
Gostei! De fugaz sensibilidade e um tom romântico perene que se manteve até o final! Um dos seus melhores contos - ou pelo menos agora um dos meus favoritos.Parabéns Oscar!
ResponderExcluirBom, eu tinha comentado, mas o google comeu. Enfim, gostei muito do conto, sensível, gentil, doce... apenas... até a última linha esperei que a Morgana fosse morta.. kkk
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