Conto - Minha História.

Perturbado


Boa noite visitante.
Lhe ofereço um novo conto, e espero que ele contribua para que tenha uma noite mal dormida.


Aquela já não seria a primeira vez e eu não estava a fim de levar outro esporro do meu pai.
“Enquanto estiver debaixo do meu teto você tem que seguir minhas regras”, era a autoritária frase preferida dele.
Não era tão tarde, meu celular indicava pouco mais da uma hora da manhã, mas para ele seria motivo para horas e mais horas de sermão e eu então me perguntava: “Por que tanto carnaval pra dormir cedo se o falatório vai até o amanhecer?”.
Não havia lógica no sistema que ele impunha e, como eu não concordava com isso, era o único dos meus irmãos que batia de frente com ele, diferente dos dois mais novos, que sempre o obedeceram como carneirinhos.
Pulei o muro para não fazer barulho abrindo o portão, a casa estava toda escura e silenciosa, o que indicava que todos estavam dormindo e eu talvez conseguisse entrar sem ser notado.
Tentei abrir a porta da sala fazendo o menor barulho possível, consegui, e logo me afastei da luz dos postes da rua e adentrei a escuridão da sala.
O cheiro de mofo invadiu minhas narinas.
“Os ladrões podem entrar se ficar tudo aberto.”, era a justificativa do meu pai para dificilmente permitir que as janelas fossem abertas.
Mas havia alguma coisa estranha. Um odor azedo tentava tomar o lugar do cheiro de costume. Verifiquei as axilas e constatei que ele não vinha de mim. Ótimo.
Por sorte eu sabia muito bem a disposição dos móveis, de forma que poderia seguir para meu quarto sem fazer barulho algum, e assim o fiz até chegar ao pé da escadaria que me levaria ao segundo andar, onde ficavam aos quartos.
Tentava controlar minha respiração temendo que até mesmo o som dela pudesse ser notada pelos aguçados ouvidos do velho, mas ao pisar o primeiro degrau, estacionei.
Aquele cheiro ficava mais forte e começou a me provocar náuseas. O que era aquilo?
Forcei a visão tentando vencer a escuridão e descobrir alguma coisa, mas a ausência de luz era total e não conseguia ver praticamente nada.
“Que droga.”, resmunguei e voltei a subir lentamente a escadaria.
A cada passo aquele cheiro se tornava mais forte, e conclui que ele só podia vir do andar de cima.
Finalmente venci o último degrau, e quando acreditava que poderia chegar ileso ao meu quarto eu tive aquela visão medonha: meus olhos foram cegados por um vulto luminoso que veio rapidamente na minha direção e se chocou contra mim, fazendo-me rolar escadaria abaixo.
O temor ao meu pai era tamanho que, naquele instante, não me importei muito com os cotovelos e costas doloridos, apenas praguejei acreditando que ele pudesse ter acordado. Ainda deitado, mirei o topo da escadaria, pra mim era certo que ele apareceria esbravejando palavrões a qualquer momento.
Angustiantes segundos se seguiram, mas ele não apareceu. Como era possível? O infeliz acordava até mesmo com o menor dos barulhos, como não teria acordado com os estrondos de eu rolando a escadaria?
A lembrança do medonho vulto retornou à minha mente. Que diabo era aquilo? O olhei por um breve instante, mas pude notar que se tratava de um homem desfigurado, como uma espécie de zumbi, e trajava um incomum tipo de manto todo esfarrapado, algo como uma mortalha.
“Um fantasma?” me perguntei, ainda incrédulo, enquanto me levantava.
Morávamos naquela casa desde que eu me conheço por gente e nunca sequer tinha ouvi falar de alguma coisa do tipo. Mas eu não estava sonhando, aquela “coisa” tinha mesmo batido em mim e me derrubado.
Não podia ser efeito das duas cervejas que eu bebera há mais de duas horas e muito menos uma alucinação por causa do “tapinha” que eu dei no baseado do Gilberto, meu primo. Era real.
Sentimentos estranhos tomaram conta de mim. Até agora não sei explicar se era medo ou preocupação, mais provável que fosse uma mistura dos dois. Medo daquela criatura e preocupação com minha família.
Como eles não haviam acordado? Será que alguma coisa tinha acontecido com eles?
Teria aquela criatura lhes feito algum mal?
“Pai!”, gritei a plenos pulmões, e acho que até os vizinhos devem ter ouvido, mas não tive sinal algum dele ou dos meus irmãos.
Eu, que até então torcia para não encontrar ninguém nas próximas horas agora queria que algum deles aparecesse e me trouxesse alívio.
Aquele cheiro desgraçado, o que era aquilo?
Sem me importar com o fato de eu poder encontrar aquele vulto outra vez eu subi as escadas correndo e entrei no quarto do meu pai.
O interruptor não funcionou e a escuridão permaneceu, junto com aquele cheiro horrível, embora eu pudesse constatar que havia energia elétrica na rua através da fraca iluminação que esgueirava pelas frestas da janela. O que estava acontecendo?
Fui até a cama e o sacudi, ele aparentemente dormia. Mas meu esforço foi em vão e ele não deu nenhum sinal, e o pior me ocorreu: ele estava morto.
Debrucei sobre ele e, colocando meu ouvido em seu peito, percebi que ele não estava morto. Fiquei aliviado, e o sacudi mais uma vez, dessa vez gritando por ele. Se não fosse o coração batendo eu juraria que ele tinha morrido.
“O que ta acontecendo?”, me perguntei enquanto saia do quarto e ia até o dos meus irmãos.
O interruptor, mais uma vez, não surtiu efeito algum, e o pútrido cheiro azedo permanecia ainda com maior intensidade,
Constatei que meus irmãos estavam no mesmo estado que meu pai: em um profundo e inexplicável sono.
Fui tomado então pelo desespero. O que estava acontecendo?
Aquele cheiro, o vulto, o estado da minha família... o que eu poderia fazer?
Mesmo na completa escuridão, dei algumas voltas pelo quarto na ânsia de encontrar alguma coisa que pudesse explicar aquilo tudo, mas obtive somente um tremor que me sacudiu o corpo ao ouvir uma tétrica gargalhada vindo de um canto do quarto.
Corri então para fora e meu pavor só aumentou quando vi duas criaturas se arrastando pelo chão, vindo na minha direção. Era um casal de velhos que gemia de forma desesperada. Seus corpos estavam mutilados, só possuíam o corpo do abdômem pra cima, e sua espinha se contorcia como um rabo de lagarto.
Fiquei imóvel sem saber o que fazer. Seria aquela visão real ou fruto de uma alucinação?
Quando dei por mim eu já estava trancado no banheiro, acreditando que lá eu estaria seguro.
Do lado de fora eu ainda podia ouvir os gemidos do casal e, ao fundo, as aterrorizantes gargalhadas.
“Que merda é isso? O que ta acontecendo?”, eu me perguntava tomado pelo pavor.
Encostado em uma das frias paredes eu olhava para a porta temendo que a qualquer instante alguma coisa a pusesse abaixo e viesse me buscar.
Novos instantes de angústia se seguiram e tudo permaneceu da mesma forma: os gemidos, a gargalhada e minha profunda confusão.
Meu coração ainda estava disparado, mas eu conseguia raciocinar, acreditando que ali dentro nada me aconteceria.
“1.9.0.”, eu teclei no celular acreditando que a polícia seria a única alternativa disponível, mas o telefone parecia mudo. A cada nova tentativa meu horror crescia mais e mais. Tentei por diversas vezes, e nada.
“Eu to ferrado.”, foi a única conclusão a que consegui chegar sem imaginar outra descoberta que eu faria logo então: o horário indicado pelo meu telefone parecia ser o mesmo de quando eu chegara em casa.
Confuso, fiquei olhando pra ele esperando os números correrem na ordem habitual, mas eles estavam estáticos. O que era aquilo? Haveria o tempo parado?
Mas foi a última vez que vi o aparelho porque um repentino estrondo na porta fez com que eu o deixasse cair, e na escuridão eu não o encontrei mais. Celular? Não servia para chamar a polícia e, sequer, para me indicar as horas.
O que mais me preocupava naquele momento era com aquilo que parecia querer abrir a porta e vir até mim.
Como eu me defenderia? Com a escova de cabelo ou com a de dentes? Eu estava ali, aprisionado, sem ter para onde fugir.
Corri até o vitrô e passei a esbravejar por socorro, acreditando que logo eu veria acender as luzes da casa do vizinho. Estava enganado, tudo permaneceu da mesma maneira, com exceção dos estrondos na porta do banheiro, que aumentavam tanto em freqüência quando em intensidade, acompanhados agora pela perturbadora gargalhada que ecoava pela escuridão. Os velhos tinham se calado, onde estariam?
Estava perdido, não havia nada que eu pudesse fazer. Apelei então para o último recurso que me veio à mente: rezar.
De joelhos, enquanto seja lá o que era se debatia contra a porta, passei a proferir as palavras do “Pai Nosso”. Era difícil me concentrar com os estrondos, mas me esforcei ao máximo.
Milagrosamente tudo se silenciou após algumas repetições das santas palavras.
Não ouvia mais as gargalhadas e nada mais batia contra a porta. Eu estava salvo.
Com a roupa encharcada de suor eu me levantei e segui até a porta, certo de que dentro em pouco estaria com minha família.
Nunca imaginei que Deus me ouviria. Justo eu, adepto de música pesada, costumes pouco louváveis e pensamentos que por várias vezes causavam repúdio em mim mesmo.
Deus era bom, essa era a verdade. Eu estava a salvo e tudo aquilo parecia então não ter sido nada além de um pesadelo.
Porém, a realidade é cruel.
Quando minhas trêmulas mãos tocaram a chave da porta eu fui arremessado ao fundo do banheiro; A criatura, o vulto, a aparição, adentrou por ela violentamente.
Bati forte com a cabeça na parede e me recordo apenas daquela criatura infernal estar se aproximando de mim com seu sorriso maquiavélico, antes de ser arremessado na escuridão da inconsciência.
Hoje, após ter se passado mais de dez anos desse inexplicável episódio, ainda repito esse relato para os psiquiatras que cuidam de mim.
Como um zumbi, dopado pelos medicamentos que recebo, circulo pelos corredores desse maldito hospício onde encontro pessoas com histórias tão ou mais perturbadoras que a minha.
Não sei se elas são verdadeiras ou fruto de suas mentes doentias, apenas sei que a história que acabei de lhe contar ganha veracidade todas as vezes que ouço, dia após dia, aquelas gargalhadas diabólicas que infelizmente ninguém mais ouve.


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