Conto - Eu e Ela

Pandemia

Após tanto tempo lhes apresento um novo conto...

Mais um dia de trabalho chegava ao fim e novamente eu voltava para casa.

Como já há um bom tempo costumava acontecer não encontrava mais um sorriso, um acalento, um apoio, um carinho... Tudo o que recebia ao chegar era aquele olhar angustiante que misturava desprezo, decepção, e por certas vezes até mesmo asco e ódio...

Por que as coisas tinham chegado àquele ponto? Onde e quando foi que tudo saiu dos trilhos? Que erros cometi para merecer aquilo? Talvez não tivesse feito nada e esse fosse meu prêmio por simplesmente ser quem sou.

Difícil dizer o que mais me machucava: seu interminável silêncio, como se não fosse digno de sua atenção, ou os momentos em que, como um copo que transborda, ela desandava a falar, trazendo à tona coisas horríveis de que há muito já tinha me esquecido.

Por que agia daquela maneira? Seria por um sórdido prazer em me torturar ou ela acreditava que daquela maneira me faria evoluir? Nunca perguntei, já não perguntava mais nada.

Quando começou a acontecer eu rebatia, me recusando a aceitar passivamente, tentava me defender, mas isso iniciava acaloradas e intermináveis discussões que no final resultavam apenas em mais feridas.

Isso aconteceu muitas vezes até eu enfim aprender que o melhor a fazer era ficar quieto, deixando que falasse até se cansar e me deixar paz, o que cedo ou tarde acontecia.

Seguiam-se então os dias de silêncio, perturbadores, acompanhados daquele olhar inquisidor, como se nada daquilo que eu fizesse fosse o suficiente.

Por que simplesmente não a deixava, tomava uma atitude e seguia adiante, nos libertando? Talvez por eu ainda acreditar que um dia pudéssemos voltar a sermos como na época em que valia a pena termos a companhia um do outro.

E assim seguiam os dias, a minha vida, como em uma espécie de piloto automático, até chegar o dia em que me vi obrigado a ficar em casa devido à pandemia que ceifava mais e mais vidas pelo mundo afora.

Agora tinha que encará-la o tempo todo... Cheguei a ficar otimista, a princípio, acreditando que com uma maior proximidade, com a convivência, talvez as coisas melhorassem, mas não foi o que aconteceu. Mesmo debaixo do mesmo teto era como se fôssemos completos estranhos, ainda que conhecendo cada um dos nossos sonhos, dos nossos medos, não existia mais cumplicidade, respeito, amor e quando palavras eram ditas não eram agradáveis.

Apenas coexistíamos, nos suportávamos, como se de uma forma bizarra tudo de ruim que sentíamos um pelo outro fosse o combustível que ainda nos mantivesse com alguma sanidade.

A esperança de que as coisas voltassem ao que eram antes já tinha deixado de existir, mas ao menos ela estava ali, me fazendo companhia, do estranho jeito dela, não me deixando sozinho, fazendo com que me sentisse vivo.

Dias se passaram, semanas, e eu já estava esgotado. Era como se o ódio dela me consumisse, me drenasse as energias. Seu torturante silêncio, seu olhar de desprezo... mas quando acreditava ter chegado ao fundo do poço ela renovava minhas forças falando coisas que acordavam o que estava adormecido, que alimentavam o que deveria estar morto, e que mesmo dolorosas, me mantinham vivo.

Eu apenas fechava os olhos esperando que se calasse, acreditando que assim não seria afetado por suas palavras, e após algum tempo, sim, o silêncio retornava, mesmo com as feridas já quase cicatrizadas estarem reabertas.

Certa madrugada, já deitado e tentando dormir, esperançoso de que o dia seguinte pudesse ser melhor, ela rompeu novamente o silêncio.

De olhos fechados apenas a ouvia, tentando me transportar para algum lugar onde pudesse encontrar paz, mas aquilo parecia não ter fim e ela parecia mais implacável do que jamais tinha sido. Evitando discutir, já tinha aprendido que de nada adiantava, decidi tomar um banho. Talvez trancado no banheiro ela se calasse e decidisse me deixar em paz, me dando uma trégua para que pudesse descansar minha mente exausta.

Debaixo da água quente ainda a ouvia me crucificando por erros do passado, pelos meus fracassos, até que o choro venceu. Não entendia o porquê daquilo tudo, sempre tentei fazer o meu melhor, então por que agia daquela maneira? Onde estava aquela pessoa que um dia tanto amei? Ambos tínhamos nos tornado pessoas totalmente diferentes daquelas que éramos quando nos conhecemos, e nos odiávamos.

Dizem que a dor muitas vezes é tão grande que acaba por nos libertar, talvez esse fosse o seu objetivo: me causar uma dor tão extrema ao ponto de fazer com que eu me libertasse de tudo...

Se é a dor que nos liberta não sei dizer, mas o destino sim, ele tem esse poder.

Após quase uma hora desliguei o chuveiro, ergui os olhos e os apertei com força, ainda com lágrimas descendo, e assim fiquei por alguns instantes até deixar o box e ir em busca da toalha.

Ah, o imprevisível e até mesmo consolador destino, aquele que nos traz todas as respostas, nos mostra todos os caminhos.

Foi em um piscar de olhos que fui vencido pelo escorregadio piso que me fez, ainda nu, chocar brutalmente a cabeça contra o vaso atrás de mim.

Estranhamente não houve dor, mas apenas um clarão e um forte zumbido que ecoou na minha cabeça, deixando-me imóvel. Em meus últimos instantes de consciência me vi ali deitado, impotente, sobre o sangue que vertia do meu crânio partido. “É, coração, agora você não está mais sozinho...”, pensei, e devo ter sorrido...

Então ela finalmente se calou. Não mais ouviria seus impropérios, suas queixas e julgamentos. Não me preocuparia mais com o que ela pensava ou esperava de mim, naquele momento eu já tinha o que mais procurava: paz.

Demoraria para alguém sentir minha falta e me procurar? Não importava, um dia eu seria encontrado, provavelmente já em decomposição, ao contrário dela que foi embora naquele instante em que meu crânio se partiu.


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