Conto - A Senhorinha

Sacada sinistra


Ainda que a contragosto haviam mudado meu turno de trabalho e eu ainda estava me habituando àquela nova rotina. 

Meu horário passou a ser das vinte e três às sete horas da manhã e para evitar algum contratempo durante o trajeto fiz uma pequena alteração nele, que ao meu ver passou a ser um pouco mais seguro.

Viver em uma cidade grande é mais complicado do que se imagina.

Eu levava cerca de quinze minutos a mais para chegar ao meu local de trabalho, um preço baixo para que se tenha um pouco mais de segurança e tranquilidade, mas por serem ruas residenciais, tranquilas naquele horário, corria um risco menor de ter alguma surpresa desagradável.

Logo na primeira noite percebi na sacada de uma das casas antigas uma senhorinha admirando a noite. 

Cabelos longos e branquinhos, pele bem enrugada, com um olhar perdido e vazio e um cigarro lhe fazendo companhia, e que ao me ver passando lançava um sorriso estranhamente enigmático e até mesmo assustador.

Sua boca banguela exalando fumaça e seu olhar vazio não eram a melhor visão que eu gostaria de ter, mas todas as noites ela estava lá, me fazendo algum tipo de companhia, mesmo que por breves instantes.

Com o passar dos dias fui me habituando àquilo tudo, à nova rotina, à presença da senhorinha na sacada, e em determinado momento comecei a cumprimenta-la com um amistoso “boa noite”. Como resposta não tinha nada além de um quase imperceptível aceno com a cabeça e com a mão na qual carregava seu companheiro fumegante.

O tempo foi passando e aquilo sempre se repetia. De certa forma a senhorinha misteriosa era a única companhia que eu tinha naquele trajeto entre o ponto de ônibus e meu local de trabalho, até que em uma certa noite não a vi mais. Aquilo me causou não apenas estranheza, mas até mesmo um pouco de tristeza. Eu tinha me acostumado com ela sempre ali, naquela sacada, me olhando, ainda que nunca tivesse me dito uma palavra sequer.

Imprevistos acontecem e provavelmente ela não era um reloginho como eu, que tinha horários a cumprir. 

Mas nas noites seguintes aquilo se repetiu, nem um sinal dela, e mesmo sem a conhecer fiquei preocupado com o seu bem-estar. 

Naquela noite observei a casa com mais atenção, toda escura, então me dei conta de que sempre tinha sido daquela forma: a senhorinha sempre esteve na escuridão, sozinha naquela sacada, tendo apenas aquele cigarro como companhia.

Infelizmente passei a seguir sozinho meu caminho até o trabalho, tendo saudade daquele sorriso que aos poucos foi deixando de ser assustador para se tornar até mesmo simpático, talvez por ser o único que eu recebia.

Certa manhã, saindo do trabalho, fiquei surpreso ao dobrar a esquina e ver uma mulher saindo daquela casa de onde antes a senhorinha me acompanhava com seu olhar vazio. Apertei o passo e consegui alcança-la para tentar obter alguma notícia sobre o paradeiro dela.

A mulher, já de meia idade, se assustou um pouco com a minha abordagem. Tentei tranquiliza-la lhe explicando o motivo da minha atitude, mas assim que trocamos algumas palavras o pavor tomou conta dos dois. 

Segundo ela, a mulher a qual me referia era sua avó, que tinha falecido já há cerca de dez anos.

Ficamos nos encarando, sem saber o que dizer.

Insisti, lhe expliquei novamente o motivo da minha curiosidade e, até mesmo de forma um pouco grosseira, questionei se aquilo não era algum tipo de brincadeira.

Não, não era. A senhorinha que eu cumprimentava todas as noites realmente estava morta já há um bom tempo.

Naquele dia confesso que não consegui dormir e cogitei se, para ir ao trabalho, não seria melhor que eu mudasse meu trajeto.

Não mudei, e para meu arrependimento o que aconteceu naquela noite me perturba a mente até hoje: quando cheguei àquela rua escura e deserta a senhorinha estava lá novamente, na sacada, com o cigarro entre os dedos, seu olhar vazio e o sorriso banguelo que voltou a ser aterrorizante.

O trajeto até meu trabalho se tornou um pouco mais curto e menos seguro, mas não suportaria vê-la me encarando e sorrindo todas as noites daquela maneira aterrorizante.


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