Conto - Demônio Íntimo.



Levava uma vida regrada e comedida, ainda que solteiro.

Procurava me manter com uma conduta reta e irrepreensível tentando ficar longe de vícios e pensamentos funestos. Não por uma educação exemplar que tenha recebido ou a pela ânsia de ser beatificado, mas por medo de ser pego em um breve ato desregrado.


Polícia ou religião? Nada disso me levava a ser como era. Tinha essa vida por saber que ele sempre estava à espreita. Ele, que me seguia desde a adolescência como uma sombra a me acompanhar onde quer que eu fosse. Uma companhia desagradável e irritante, mas da qual não conseguia me desvencilhar.
Por vezes o sentia através de terríveis arrepios que me faziam gelar os ossos, em outras, ele de forma imprevisível se aventurava a aparecer para mim na forma de vultos que me horrorizavam.
Eu sabia que ele sempre estava ali, me seguindo e vigiando, aguardando o momento de me arrastar para as profundezas do inferno. Ele, um demônio, com o único objetivo de conquistar minha alma.
De início tentei entender o motivo de ele me perseguir, mas ao perceber que a resposta talvez fosse impossível de ser encontrada, acabei por desistir de encontrá-la e, por mais bizarro isso possa parecer, acabei me acostumando à sua presença.
Algumas vezes, tomado pela ira que a impaciência lhe impunha, derrubava algum objeto próximo a mim na ânsia de me assustar. Em vão, pois ele não mais era capaz de me desviar dos meus pensamentos, como em minha tenra idade quando ele ainda conseguia me apavorar.
Da casa para o trabalho, por vezes reuniões inocentes com alguns amigos ou festas de familiares, mas sempre me mantendo distante de tudo que pudesse abrir as portas da minha alma para seu ingresso. Bebidas ou qualquer outro tipo de substância que pudesse me fazer sair do meu consciente para mim era proibido. Eu me proibia. Qualquer deslize e ele poderia se apossar de mim, como sempre quis.
Era isso que ele desejava, esse era seu objetivo, e eu sabia. Não me pergunte como, mas eu sempre soube, afinal, o que mais um demônio poderia desejar?
Certa vez uma amiga do trabalho decidiu comemorar seu aniversário em uma casa noturna requintada próxima ao centro da cidade. De início relutei em comparecer, evitava tais lugares por saber das tentações que nele existem, mas a força da amizade que nutria por ela acabou fazendo com que eu fosse ao evento. Ela insistiu muito, mas seria coisa rápida. Uma passada ligeira para marcar presença e demonstrar minha afeição por ela e ir logo embora. Esse era o plano.
Era bem suave e parecia inofensiva, mas foi o suficiente para que entorpecesse meus sentidos. Insistência das amizades presentes. Eu nunca bebia e foi a porta de entrada que finalmente se abriu para a fera que tinha junto de mim. Para todos invisível, mas que estava diante de meus olhos intercalada pelo piscar insistente e desconcertante das luzes.
Uma menina de aparência angelical e inofensiva. Acabei por me envolver com aquela bela garota de cabelos loiros e pele alva como o leite, parente de minha amiga. Prima, sobrinha, não me recordo.
Música alta, mais doses de álcool e até mesmo alguns tragos em cigarros dos mais diversos sabores. Fora do meu estado normal, sem saber bem o que estava fazendo, acabei levando-a ao meu apartamento.
Uma noite de amor como há muito eu não tinha. A menina doce se mostrou uma voraz predadora sexual e me proporcionou momentos de indescritível prazer.
Obedecendo ao metabolismo masculino, acabei pegando no sono romanticamente abraçado a ela, após exaustivas horas de sexo sem pudor algum.
Tudo contra o qual eu havia lutado durante toda a vida agora estava presente em mim. Álcool, nicotina, hormônios...
Faltava pouco para o sol despontar no horizonte quando, incomodado com uma estranha umidade que preenchia toda a cama, despertei assustado. O corpo quente ao qual havia dormido abraçado não mais possuía o calor de antes.
Levantei apressado e corri em acender a luz. Antes de me horrorizar com o corpo ensangüentado sobre minha cama pude observar o funesto vulto que assistia a toda a cena macabra: ele estava ali e parecia finalmente satisfeito.
Algo como uma diabólica gargalhada me chegou levemente aos ouvidos que estavam, então, ocupados com os gritos de desespero que eu emitia.
Isolado na cela fria à qual fui trancafiado pelo crime cometido finalmente não sinto mais sua odiosa presença junto de mim. A fera finalmente conseguira o que tanto desejava e seguira seu desconhecido caminho.
Agora, prestes a saltar de cima da pia com uma corda de lençóis enrolada ao pescoço, tenho em minha mente a única regra que sempre respeitei e que, ao ser esquecida por um breve momento, me arremessou ao inferno em que agora me encontro.
“Orai e vigiai”.


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