Conto - O Desejo de Ipupiara.






A menina contemplava o mar à frente, com olhos semicerrados por causa do reflexo do sol nascente sobre aquele imenso espelho natural. As águas eram calmas, apenas um leve encrespar denunciava a presença da brisa.


Sentada no fundo da canoa estreita, fechou os olhos para poder apreciar melhor as agradáveis sensações captadas pelos seus sentidos. O toque suave dos raios luminosos sobre a pele morena; a brisa acariciando os cabelos longos e negros, trazendo consigo o cheiro de mar, tão apreciado por ela; e, finalmente, os ouvidos atentos na vã tentativa de captar algum som em meio ao silêncio absoluto.
Ela ficou em estado de alerta, sua visão a perscrutar o ambiente ao redor, sentindo que algo estava errado. Somente mar em todas as direções. O silêncio tornava-se cada vez mais opressor e a quietude marítima denunciava algo. Aquilo não era natural.
Em poucos segundos, nuvens maléficas rodopiaram pelo céu como imensas serpentes acinzentadas. O belo amanhecer transformou-se em noite sobrenatural. A menina queria fugir, mas não havia saída. O corpo nu arrepiou-se inteiro e o desespero foi tudo o que restou. E então ele veio.
Uma ondulação incomum ao lado da canoa denunciou sua chegada. A mão grotesca emergiu rapidamente, agarrando a borda da canoa. A garota fitou com olhos arregalados as membranas a cobrir os vãos entre os dedos escamosos dotados de garras ameaçadoras. Tudo era de um tom verde doentio, quase negro e reluzente, dando a impressão de viscosidade. Isso, aliado ao profundo odor de podridão, causava repulsa à jovem.
Repentinamente, a canoa começou a balançar de forma violenta. O ser medonho queria derrubá-la, trazê-la para o seu meio, e ela sabia que isso seria fatal. Tremendo dos pés à cabeça, deitou-se de costas no fundo da canoa e procurou apoiar pés e mãos nas paredes internas de madeira escavada.
O coração batia freneticamente, parecendo querer explodir no peito, fazendo a cabeça latejar e doer. Os pulmões, em um instante de completo pavor, paralisaram o movimento vital e deixaram aquele corpo sôfrego sem ar. Então, em um movimento tão lento que pareceu levar um dia inteiro, a canoa emborcou.
Utilizando toda a força de seus membros, a vítima aguentou firme, lutando contra a gravidade que impiedosamente insistia em jogá-la ao mar. As águas negras estavam a poucos centímetros do rosto apavorado, os cabelos gingavam preguiçosamente sobre a superfície líquida, trazendo uma sensação incômoda.
Mesmo sem ser fisicamente possível, ela conseguiu enxergar a aproximação do monstro sob aquele negror fluido e profundo. Um horror indescritível, nem humano nem peixe, terrível híbrido coberto de escamas e barbatanas medonhas.
Finalmente seus pulmões decidiram voltar a funcionar. Grande quantidade de ar infecto foi sugada, inflando-os até arderem. No fluxo de expulsão desse ar, a menina gritou como nunca antes havia feito, pois esta era sua única defesa naquele momento. O lamento pavoroso perdurou mesmo quando ela caiu sobre o mar, sentindo o impacto da queda como se este fosse sólido. O beijo do demônio marinho foi desagradável ao toque, fétido, repulsivo.
Repentinamente, o cenário mudou. A superfície líquida virou terra, o abraço da criatura tornou-se lama malcheirosa, a canoa mostrava-se agora na forma de uma rede de dormir. Outra versão do mito do monstro debaixo da cama tomou forma, desta vez sob a ótica de uma pequena índia de doze verões de idade, moradora daquela aldeia à beira-mar. Esse lugar um dia viria a chamar-se São Vicente, mas isso aconteceria muitas décadas depois dos acontecimentos aqui narrados.
A mãe da jovem correu a acudi-la. Ela dormia em uma rede próxima, no interior da mesma oca que abrigou os sofrimentos noturnos da menina. Ajudou-a a levantar-se e conduziu-a a um local onde seria possível se lavar. Durante aquele vívido pesadelo, ela urinou. Depois, debateu-se no sono, enrolou-se na rede e caiu sobre a poça fétida no chão de terra batida.
Era início da manhã de tempo bom, quente e úmida. Na saída da oca, foram saudadas pela agradável brisa marítima, vinda da praia localizada a menos de uma centena de metros dali. As pessoas no início das atividades diárias lançavam olhares apreensivos à dupla, conforme elas iam atravessando a aldeia, rumo a um curso de água doce próximo. Foi possível diferenciar uma palavra entre os murmúrios dos índios: Ipupiara.
Já na margem do rio que corria na direção do mar, a mãe ajudou a menina a se lavar, retirando a lama espalhada pelo corpo. Esse foi o último resquício da noite de agonia pela qual havia passado, pois as terríveis lembranças do monstro marinho iam sumindo como um filete de fumaça levado pelo vento.
Mais calma, apreciando a sensação trazida com a correnteza fria a enrijecer seus músculos e a refrescar a mente, a garota optou por permanecer mais um pouco por ali, quando a mãe anunciou sua volta à aldeia. A jovem sempre apreciou nadar naquelas águas marrons e relaxantes, amava a solidão fluida da qual raramente conseguia desfrutar.
E ali permaneceu por algum tempo, entre braçadas suaves e flutuações sobre a leve correnteza. Algo, porém, arrancou-lhe bruscamente o prazer de tal recreação. Começou como um movimento estranho rio abaixo, que ela poderia jurar tratar-se de um grande rabo de peixe negro a golpear a superfície.
Imediatamente ela nadou na direção da margem mais próxima. Os poucos metros que a separavam da terra firme pareciam nunca ser vencidos, apesar dos movimentos frenéticos de pernas e braços numa tentativa desesperada de deixar o meio natural daquela ameaça. Quando estava quase alcançando o ponto de fuga, sentiu algo pontiagudo e escorregadio roçar seus pés.
Gritou, tomada pelo medo, e somente parou o lamento ao engolir uma quantidade considerável de líquido, fazendo-a sufocar. Felizmente, já havia alcançado um ponto onde era possível ficar de pé sobre o leito escorregadio do rio. Correu às cegas, com o olhar turvado por lágrimas e cabelos embaraçados. Os últimos centímetros foram vencidos com um salto, resultando na queda com o peito sobre a terra.
Ainda um pouco aturdida, girou o corpo e sentou-se, de modo a poder enxergar o rio, e percebeu não haver acabado a ameaça. Uma ondulação se formava suave, como se alguém nadasse submerso próximo à superfície de águas escuras. A forma negra a emergir junto à margem, entretanto, não era humana.
De imediato, ela correu tropegamente até a aldeia, mas o vislumbre de uma fração de segundo foi o suficiente para trazer à tona as cenas terríveis do seu pesadelo então esquecido. As mesmas garras afiadas projetando-se dos dedos disformes. O mesmo arremedo de rosto, grotesca combinação de escamas, dentes afiados e buracos terríveis fazendo as vezes de narinas. Os olhos inumanos arregalados, contemplando-a com apetite. Barbatanas grotescas coroando um rei demoníaco das regiões abissais sob o grande oceano.
Chegando ao conjunto de habitações, procurou logo o pajé. Após ouvi-la atentamente, o ancião tratou de acalmar a jovem amedrontada, explicando-lhe estar seu corpo mudando, e isso estava mexendo com sua cabeça. O sangue da feminilidade havia brotado recentemente, e essa fase de transição entre menina e mulher era mesmo confusa.
O pajé pediu que fosse até a mata e coletasse um conjunto de ervas aromáticas. A menina assim o fez, e ao retornar encontrou o líder místico aguardando-a nos limites da aldeia, com uma bacia de água e um pequeno pote com pilão, instrumento utilizado para amassar as ervas.
Os dois sentaram-se em meio à vegetação, a bacia entre eles, o pajé preparando as ervas aromáticas e misturando-as na bacia. Entoava um cântico tranquilizador que, combinado ao odor agradável, trouxe novamente paz à jovem índia. Ela cerrou as pálpebras e permitiu-se relaxar novamente, na apreciação da voz cantarolante, associada a sons da mata e das atividades cotidianas da aldeia.
Os cheiros ficaram mais intensos e seus cabelos moviam-se mesmo sem vento. Não sentia mais braços e pernas, e essa sensação de entorpecimento era agradável. Sentiu a cabeça inclinar-se na direção da bacia e abriu os olhos, com medo de adormecer e cair. Nesse instante, percebeu estar de volta ao mundo dos pesadelos.
Novamente a tenebrosa mão verde a tocava, dessa vez a puxar suas madeixas, conduzindo-a até a bacia, de onde surgia anormalmente. A visão buscava algo que pudesse salvá-la, e só conseguiu encarar a figura do pajé de olhos fixos na bacia, impassível, entoando o cântico sem parar.
De milímetro em milímetro foi tragada pela água até então relaxante, tal qual a presa indefesa devorada por uma sucuri, paralisada, mas mesmo assim plenamente desperta. Sem piscar, o ancião assistiu a tudo, até os pés da pobre indiazinha sumirem na bacia rasa, engolfada pela torrente sobrenatural. De repente, tudo acabou.
Ele cessou o cântico mágico e o portal profano fechou-se. Estava feito. O Ipupiara havia levado sua noiva para as profundezas do mar, de onde somente sai para saciar a sede de sangue jovem. O espírito da menina estava condenado, mas o resto da aldeia ficaria em paz por mais algumas décadas. Quando a criatura voltasse àquelas terras para reclamar um novo sacrifício, ele não estaria mais por ali.
Esvaziou a bacia e retornou à aldeia. Ao final da tarde daquele dia, a mãe da garota servida como oferenda procurou-o angustiada, pois não encontrou a filha na aldeia, após ter cumprido suas tarefas diárias. O pajé acalmou-a, afirmando ter a filha partido em jornada rumo ao seu destino.
Pelo resto da sua vida, a índia alimentou a dolorosa esperança de um dia voltar a ver a filha. O olhar perdia-se na direção do mar e uma tristeza profunda a invadia, mesmo sem saber ao certo porque aquela visão despertava tal sentimento. Seu pesar só não era maior que o do pajé, homem que teve de encarar a difícil missão de escolher entre condenar uma criança ou lançar toda a tribo à desgraça. Ninguém soube do ocorrido. O ancião carregou sozinho o peso da culpa.


Alfer Medeiros

Biografia: Alfer Medeiros é o pseudônimo de Alexandre Jorge Ferreira Medeiros, português radicado em São Paulo desde a infância.


Apreciador de expressões culturais como literatura, música, cinema e quadrinhos, através dos quais obteve a inspiração para criar sua primeira obra literária.
Analista de sistemas e professor universitário por profissão, adotou a escrita por pura paixão pela fascinante expressão artística das letras.
Obras já publicadas: UFO – Contos Não-Identificados (antologia, Editora Literata), Fúria Lupina Brasil (independente), Asgard – A Saga dos Nove Reinos (antologia, Jambô Editora) e Cursed City (antologia, Editora Estronho).






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