Conto - Submissão.





As chicotadas, ainda sangrantes, definiam seu status naquela relação: a servidão absoluta ao seu dono e senhor. 

A safeword interrompera a cena, bárbara aos olhos de baunilhas desavisados. Para os adeptos, nada além de um estilo de vida interessante em um mundo tedioso.  Enquanto ela tentava recompor-se, seus olhos se cruzaram com os dele e um pânico dissimulado invadiu-lhe: era o novo colega de escritório, um homem atraente, porém reservado.  Ela ainda tentou se esquivar como quem apenas desvia de um conhecido na rua, mas não adiantou; ele manteve o olhar e sorriu-lhe maliciosamente.  Ela, desconcertada, retribuiu.  O que aconteceria na segunda-feira?  Nada. Ele agiu como um cavalheiro.  Nenhum gesto ou palavra que pudesse remontar ao encontro revelador.  No entanto, ambos sabiam que não havia como aquilo ser meramente esquecido.  Na quarta-feira ela já não suportava mais a curiosidade: o que ele fazia lá, era top ou bottom ou switcher?  Mas como falar disso com um colega de escritório?  Um colega de escritório que a vira... Sangrando?! No cafezinho eles se encontraram e não houve escapatória. O cavalheirismo dele acabou com um sorriso sedutor, um sorriso perturbador em que ela observou os caninos pronunciados.  Um "vampire player".  Interessante, pensou ela.  Um novo jogo? Na sexta ela decidiu, afinal, perguntar-lhe o que achara do encontro.  Ele adoçava o café e ficou olhando para o líquido escuro que ainda girava na xícara. Decepcionante, respondeu encarando-a, os caninos mordendo o lábio suavemente. Por que, ela queria saber. Não tiveram como aprofundar o assunto no ambiente de trabalho e o adiaram para a happy hour.  Ele a levaria a um lugar BDSM de verdade, garantiu. Depois da promessa, uma espera de insuportáveis duas horas até o momento em que ela entrou no carro dele e notou o crucifixo invertido no retrovisor.  Clichê, pensou.  Ele percorreu ruas estranhas, até entrar numa casa sóbria, conservadora.  A campainha era abafada como um grito seco.  Uma mulher elegantemente vestida abriu a porta e logo eles estavam em um ambiente luxuosamente vermelho, púrpura e negro de play-parties.  Velas bruxuleavam e um darkwavere soava nos corredores.  Uma mesa os esperava com vinho e duas taças negras.  Conversaram, ela defendendo os amigos,  ele chamando-os de amadores desajeitados, "baunilhas apimentados"... Riram muito, quando ela finalmente entendeu o sarcasmo dele. Ele não a beijou e, já em casa, ela não conseguia esquecer o seu sorriso e a voz grave do (agora ela sabia) top, que a excitara e a fizera rir.    Mais tarde, o telefone tocou e era ele.  Conversaram muito até ele desligar.  Já era quase manhã e ela mal pode dormir. Estava fascinada por ele e, ao mesmo tempo, preocupada. Seu contrato permitia sessões avulsas, mas ela ainda não ousara fazê-lo. O dia passou letárgico e quente, úmido; um dia de verão usual na região. Ela tentou fazer as suas coisas como sempre; comprar, organizar, limpar... A cabeça insistindo em pensar nele, o corpo desejando-o, até o telefone tocar e seu senhor lembrá-la de sua existência.  Desconversou, alegou cansaço, talvez uma gripe se aproximando.  Melhor não arriscar, não podia faltar ao trabalho na segunda...  Relutante, o senhor aceitou a negativa e ela desligou, ajeitando-se sob o roupão, onde as chicotadas, mesmo tratadas, ainda doíam. Entre cremes e algodões ela se preparava para deitar quando mais uma vez o telefone a interrompeu.  Era ele, e queria vê-la.  Depois dela trocar os cremes pela maquiagem e um vestido novo, ele a buscou em casa e voltaram ao casarão, que lhe pareceu envolto numa atmosfera mórbida e surreal, agora.  Ela não sabia por que, mas as pessoas pareciam diferentes, etéreas. Sentaram-se na mesma mesa do dia anterior. Conversavam sobre tudo e ela se sentia segura e desejada.  Entre olhares, beijos e risos, a noite iniciava ardente e provocante. Reparou no olhar sério dele pouco antes de perguntar-lhe se queria ir embora.  Sim, ela queria, era o que ela mais queria, desejosa.  Nocarro, um longo trajeto desconhecido até a casa dele. Uma casa simples, sem atrativos.  Pediram uma pizza, comeram, conversaram e riram muito até que, entre beijos e abraços, ele quis amarrá-la.  Ela falou que não apreciava muito o shibari, e que isso pedia um acordo prévio. Acordo? Ele riu estranhamente e ela se assustou com o comportamento agressivo dele.  Com a voz grave que a fascinara, ele a avisou que não, não haveria acordo, contrato, nenhuma das bobagens da comunidade BDSM.  Ali ele era o senhor dela e prevalecia apenas a sua vontade.  Ela quis argumentar e a resposta dele foi esbofeteá-la. Acordou numa sala enorme, com poucos móveis e muitas almofadas, uma cortina pesada, escura. Ele estava parado, em pé, observando-a.  Não havia mais malícia em seu olhar, mas algo maligno.  Ela tentou levantar e caiu sobre um enorme sofá.  Sua face queimava e antes que pudesse protestar, ele saltou sobre ela.  Beijou-a, mordeu-a, dizendo coisas ininteligíveis, irrepetíveis. Seminua e dominada, a cópula foi intensa, dolorosa...  Exaurida, ela só pode entrever as presas gotejantes preparando-se para atacá-la e, não conseguindo gritar, desmaiou.   Quando acordou, desnorteada, ele mordia um de seus seios desnudos, ensanguentados. Ofegante, ela respirou profundamente o odor ferroso que impregnava o ar. O bloodsport ultrapassara os limites. Seu subspace foi a própria morte.


Glossário:

acordo: acerto sobre o que será permitido numa sessão
baunilha: pessoa não praticante de BDSM
baunilha apimentado: pessoa que utiliza elementos básicos de BDSM
BDSM: Bondage, Disciplina, Sadismo e Masoquismo
bloodsport: atividades com sangue
bottom: submisso
contrato: acordo entre top e bottom
darkwave: estilo gótico
play-parties: festas BDSM
safeword:palavra que o bottom usa para interromper uma sessão
senhor: top, dominador, dono
sessão: período de atividades BDSM
sessões avulsas: sessões com outras pessoas
shibari: amarração com cordas
subspace: prazer
switcher: pessoa que é top e bottom
top: dominador, senhor, dono
vampire player: pessoa que finge ser vampiro




Karin Kreismann Carteri

BiografiaKarin, bibliotecária nascida em Porto Alegre, RS, onde reside. Escreve  prosa e poesia (pelo menos tenta...). Publicou em Flores do Lado de Cima, Estronho e Esquésito, Contos Sombrios, Contos Grotescos, Revolução Cultural, Almanaque Gaúcho (Zero Hora), Premio LilaRipoll de Poesia 2010 e coletânea Escritos III.  Mantém o blog pessoal http://haumdemonioatrasdaporta.blogspot.com.






Um comentário:

  1. Nossa, Karin, ainda não conhecia o seu estilo... muito bom mesmo, conto delicioso!

    E ao mesmo tempo apavorante...

    (ao menos para os baunilhas deve ser... rsrs).

    Bjs,
    Amanda Reznor

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