Conto - A Viagem Maldita.



O carro avançava bem abaixo da velocidade máxima indicada nas placas a margem da rodovia. Não por falta de destreza na direção por parte do condutor, mas devido à densa neblina que repentinamente tomara conta de toda a região.

Tão repentino havia sido seu surgimento que uma pessoa mais impressionável atribuiria sua origem a algo sobrenatural. Mas para o rapaz sisudo que conduzia o automóvel ela não passava de mais um ingrediente para tornar aquela viagem extremamente desagradável.

_Pois é, e ainda tem coragem de dizer que não te amo... – ele resmunga.

_Por que está dizendo isso? – indaga a carona com os olhos vidrados a observar as margens escuras e nebulosas da rodovia.
_Você ainda pergunta? Só você pra me convencer, nesse frio, a fazer essa viagem cansativa pra ir no aniversário da sua mãe. E agora, com essa neblina, vamos demorar ainda mais, que droga. Só pode ser amor mesmo...
_Eu sei que você me ama, quando digo o contrário é quando brigamos e eu fico com raiva. Olha, eu sei que essa viagem é um porre pra você e sei que só está indo por minha causa. Obrigada tá? – ela lhe dá um gentil beijo no rosto.
_Tudo bem, só espero que esse pesadelo termine logo. Sogra, cunhados... meu Deus, onde fui amarrar meu burro?
_Não sei por que você não gosta deles. Nunca te fizeram nada, nunca falaram mal de você pra mim, é cisma sua. Se eu tivesse carta de motorista eu iria sozinha assim você não precisaria se sacrificar tanto. – ela já fecha a cara, irritada com o mau humor do marido.
_Pois é, tire logo essa bendita carta então. – ele finaliza a conversa.
Mais alguns minutos se seguem onde o silêncio dentro do confortável veículo é total até o motorista se manifestar.
_Não acredito, só faltava essa agora... – esbraveja ele jogando o carro para o acostamento.
_O que foi?
_Não está ouvindo esse barulho no motor? Deu tilti nessa porcaria!!!
_Pra mim tá normal, não ouço nada de mais. Deve ser desculpa pra não seguir a viagem.
_Mulheres... – ele sai e vai em direção ao capô do carro.
O rapaz, encolhido por causa do frio, olha o motor apenas por olhar já que não entende nada de mecânica. De repente, se o motor percebesse seu mau humor, ele resolveria funcionar de novo...
Logo ele volta para o interior do veículo e tenta dar a partida. O estranho barulho do motor parecia ter aumentado ainda mais.
_Não dá pra seguir até algum posto ou algum lugar onde dê pra arrumar isso?
_E correr o risco de fundir o motor? Você quer me ferrar né? Se forçar o motor pode ser pior, aí detona ele de vez.
_E como sabe que vai fundir a droga do motor?
_E como sabe que não vai? O mais legal é que o celular está sem sinal, tenta o seu... – diz ele guardando o aparelho no bolso.
_Tentei telefonar quando você estava lá fora, tá sem sinal também. O que a gente vai fazer?
_Sei lá, não dá pra telefonar pra ninguém e nesse horário dificilmente algum carro vai passar aqui nesse fim de mundo. O jeito vai ser esperar o dia clarear e procurar algum tipo de ajuda. Tá um breu lá fora que não dá pra ver nada, sem dizer o frio...
_Ah não, eu não vou passar a noite aqui no carro. Dá um jeito...
_Que jeito pô? O que eu posso fazer?
_Se vira, quem manda não cuidar direito do carro? Eu que não vou ficar aqui, dá um jeito.
_E quem disse que eu não cuido do MEU carro? A culpa é sua, quem mandou querer fazer essa maldita viagem pra adular sua mãe? Se a gente tivesse ficado em casa não estava passando por isso.
_Quer saber? Fica aí no SEU carro, eu vou me virar, dane-se! – a moça veste um fino casaco, que provavelmente não será suficiente para protegê-la do frio, e sai do veículo.
_Droga, volta aqui! – o rapaz grita sem obter resposta alguma.
Logo ele não consegue mais enxergar sua esposa, que adentra o denso matagal que cerca a rodovia.
_Filha da mãe!! – ele grita enquanto a imita.
A pouca luminosidade existente é a dos faróis que ficam cada vez mais distantes dele, que mergulha na escuridão e na neblina que dominam a mata densa.
_Querida! Volte aqui, não fica andando sozinha por ai, pode ter alguma cobra ou alguma coisa assim! – ele grita mais preocupado em voltar para o calor do automóvel do que com a segurança da esposa.
Parado no meio do matagal ele aguça os ouvidos na tentativa de identificar a direção onde a esposa possa estar, mas o silêncio é total. Nem mesmo grilos podem ser ouvidos devido à baixa temperatura. Nada se encorajaria a enfrentar aquela temperatura, a não ser ele.
“Que droga, onde ela foi parar? Mulher teimosa do caramba! Pior se acontecer alguma coisa com ela, vou ter mais dor de cabeça ainda.” – ele pensa forçando a vista na vã tentativa de enxergar alguma coisa através da densa neblina.
Depois de esperar um pouco ele decide caminhar a esmo na esperança de que encontre a garota que desaparecera na escuridão. Mudava de direção a todo o momento e gritava seu nome tentando obter alguma resposta. Queria encontrá-la logo e poder voltar pro carro.
“Mas pra que lado está mesmo o carro?” – ele se pergunta.

...

Não muito longe dali mornas lágrimas se esforçam para aquecer o rosto frio da moça que caminha apressada pelo meio da mata.
_Miserável, só pensa nele, na alegria dele e no bem estar dele. Que se dane se ver minha família me deixará feliz, o que importa é que ele esteja feliz e contente. Não sei por que pedi pra ele me levar, devia ter ido de ônibus e deixar ele com o mau humor dele lá, infeliz!!! – ela enxuga as lágrimas com as costas das mãos em meio a soluços.
Tão perturbada ela está por causa da atitude do marido que sequer se dá conta do risco que corre adentrando aquela mata desconhecida em meio a uma falta de visibilidade como aquela. O problema não seria propriamente encontrar algum animal que pudesse atacá-la ou despencar de algum possível barranco existente no meio do caminho. O problema é que lendas regionais diziam que estranhas criaturas viviam por aquela região.
Passadas rápidas em busca do quê? Nem mesmo ela saberia dizer, mas seguindo pelo caminho reto como fazia ela logo consegue avistar uma luminosidade em meio à neblina e à escuridão. Um porto seguro me meio àquele pesadelo.
“Tem alguma coisa lá, espero que dê pra chamar um mecânico ou coisa assim” – ela constata encolhida abrigando-se da baixa temperatura.
Uma casa relativamente simples, mas o suficiente ao menos para poder abrigá-la por aquela noite caso não houvesse a possibilidade de solicitar algum socorro. Suportar aquele frio por toda a madrugada era impensável.
Após bater à porta uma soturna pessoa a atende. De início é difícil distinguir se ela se trata de homem ou mulher por causa da vasta cabeleira mal cuidada e da pálida pele enrugada devido aos passar dos anos. O pesado casado a cobrir-lhe todo o corpo também não facilita sua identificação.
_Pois não? Nossa, o que faz nesse frio menina? Entre, vamos. – a firmeza da mão que agarra seu braço indica tratar-se de um homem, ela não tem tempo sequer de responder, mas estranha a frieza cadavérica de sua mão.
No interior da humilde residência o atencioso senhor ouve as explicações necessárias sobre a situação da mulher, que ingere um revigorante chá quente. Ele demonstra uma simpatia nada condizente com a imagem que transmite, para alegria da moça, mas não faz menção alguma sobre sua crise com o marido.
_Parece que não deram muita sorte essa noite, menina. Infelizmente nós não temos telefone aqui e, como pôde constatar, não há sinal de celular pra esses lados. Aqui é meio do mato, não tem dessas facilidades. Mas ao menos eu parece que estou com sorte, não passarei a noite sozinho. – ela sente um certo tom malicioso na voz do homem que a encara profundamente como podendo enxergar dentro de sua alma.
_Meu marido vai chegar logo, assim terá mais alguém para conversar. E você disse “nós”, tem mais alguém que mora aqui? – ela relata na tentativa de eliminar qualquer segunda intenção daquele homem que lhe causa arrepios.
_Às vezes sim. Bom, é possível que seu marido chegue aqui, desde que ele não dê o azar de se encontrar com um amigo meu. – um sorriso sádico se faz presente em seus lábios.

...

Mesmo com o frio a lhe congelar a ponta do nariz e das orelhas o suor começa a brotar da testa do esbaforido rapaz que caminha a esmo por entre a mata densa.
Seu coração bate acelerado e gritos desesperados escapam de sua garganta sem que se dê conta disso. Parece ser sua alma clamando por ajuda.
_Querida, cadê você! Me desculpa se eu te magoei, mas você sabe como eu sou, me perdoa!! Vem logo, vamos voltar pro carro!! Tá frio pra caramba! – a idéia de ele nem ao menos saber para que lado seu carro está o enche ainda mais de pavor.
Respiração ofegante, olhos arregalados e suor umedecendo-lhe os cabelos e rosto. Ele sabe que está em sérios apuros e não será encontrando a esposa que eles serão solucionados. Chega um certo momento em que ele nem mais se lembra do motivo de ter adentrado pela mata, tudo o que ele quer é sair daquela situação angustiante.
Logo ele chega a uma pequena clareira em meio àquela mata densa que tudo domina. Misteriosa, contrastando com a mata fechada que a cerca, não parece algo natural, assemelha-se à uma arena, mas sem muros.
“Deve ter alguém aqui por perto, eu acho” – ele pensa olhando ao redor. Alí na clareira ele enxerga mais adiante do que há alguns instantes e por ter ampliado seu raio de visão é que consegue perceber o mato que balança logo à frente. Algo se aproxima.
Um medo indescritível o domina. Pode ser uma onça, uma suçuarana, um porco do mato ou algum animal que poderá matá-lo com terrível ferocidade sem que ele possa se defender. Suas pernas se aquecem com a abundante urina que escorre por elas, o pavor fala mais alto.
Paralisado pelo medo, embora a temperatura também pudesse congelá-lo, ele vê algo grotesco adentrando a clareira. Enorme, peludo e assustador.
Não é nenhum animal selvagem.
Mas também não é humano.
O rapaz não teria tempo para descobrir o que era aquilo que o devoraria ainda vivo.
Sim, ela o mataria com terrível ferocidade sem chance de defesa.

...

No interior da aquecida casa de madeira a garota se encolhe na cadeira, não mais por causa do frio, mas procurando se proteger do homem que a devora com os olhos.
_Sabe, a vida aqui é muito monótona. Dificilmente aparece alguém aqui, aliás, nem sei dizer quando foi a última vez que pude ter a companhia de alguém. – o assombroso homem puxa conversa com ela como se tivesse necessidade de falar.
_É, eu imagino. Mas e a pessoa que mora com você? O seu amigo? – a mulher reponde tentando aparentar interesse e simpatia, mas o medo estampado em seus olhos é impossível de não ser notado.
_Infelizmente meu amigo não é muito de falar, aliás, nem sei se ele fala. Nas últimas vezes em que o encontrei não trocamos nenhuma palavra, ele é muito diferente de mim. Eu o chamo de amigo, mas nem sei se posso considerá-lo como um, sabe? Temos nossas afinidades, mas amigos, acho que não. – ele parece despi-la com os olhos injetados.
Tudo o que ela deseja é correr dali, se afastar daquele homem e nunca mais voltar àquele local. Mas como fazê-lo sem permitir que ele tenha alguma atitude violenta? A porta atrás dela parece ser a única saída possível. Poderia sair correndo...
Seus olhos se enchem de lágrimas mais uma vez, mas não de tristeza como ocorrera há pouco, mas sim de medo. Ela percebe o molho de chaves balançando sinistramente na mão daquele horrendo homem que a olha como se pudesse ler seus pensamentos.
O silêncio impera, entrecortado pelo estalar da lenha da lareira próxima, o homem a encara de forma sinistra. Ela não sabe identificar que tipo de olhar é aquele. Um olhar de lascívia, de sarcasmo, de fome ou de ternura. Nunca encontrara um olhar como aquele, mas ela se esforça por não mais o encarar, seus olhos lhe causam medo.
Ela dá um pulo na cadeira ao ouvir um terrível grito do lado de fora. De imediato, com seu coração quase lhe saltando pela boca, ela não consegue identificar, mas logo se dá conta de que é o grito do seu marido. Um grito de horror, de dor, de despedida...
Ao encarar o dono do casebre ela se depara com um incompreensível sorriso de alegria em seu rosto.
_Pois é menina, parece que seu marido encontrou meu amigo. Que pena...
Antes que ela possa entender o que se passa, afiadas presas são cravadas em seu pescoço ao mesmo tempo em que as rudes mãos daquela criatura a agarram impedindo qualquer tipo de defesa.
Dor, desespero e tristeza. Lentamente sua visão se turva até escurecer por completo.
Assim como seu marido, ela encontrara a morte.


4 comentários:

  1. Bro, me amarrei no conto.

    Arrepiante e bem costurado.

    PArabéns irmão...continue assim.

    Beijinhos sangrentos..

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  2. Meu querido amigo, que mente fantástica é essa?! Seu conto não é bom, e nem ótimo, ele é extraordinário! As grandes Editoras precisam conhecer essa mente fértil e ilimitada em suas criações. Parabéns meu amigo! Que Deus ilumine cada vez mais essa mente maravilhosa e que lhe abra as portas para o sucesso. Você merece! Bjs.

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  3. Hehe. Quem mandou eles saírem do carro?
    Parabéns meu amigo!
    Um ótimo conto cheio de suspense e mortes sangrentas. rs
    Muito sucesso pra ti.
    Um Grande Abraço!

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