Carta - A Presença.



“Talvez se eu pudesse compreender o motivo disso tudo fosse capaz de encontrar uma forma de remediar tal situação.



Ser perseguido por algo que sou incapaz de entender talvez seja o que mais me aterrorize: o motivo de fazer o que fazes.
Concede-me a torturante capacidade de pressentir as verdadeiras intenções dos que se aproximam de mim. Vejo amizades interesseiras, paixões mórbidas e intenções mesquinhas daqueles com que, por algum motivo, me vejo obrigado a conviver. Afasto-me delas diante da repulsa que seus pensamentos despertam em mim.

Aos poucos criei uma barreira que impede qualquer um de se aproximar. Antipatia, rispidez, mau-humor... Com o passar do tempo tornei-me uma pessoa solitária e chegou um ponto em que ninguém mais se interessa por mim de nenhuma forma.
Conto apenas com sua incômoda presença dia e noite ao meu lado. Útil por retirares o véu da inocência que cobria meus olhos, porém incômoda por sempre fazer-me enxergar a maldade presente nas pessoas.
Sozinho. Perdido dentro de meus pesadelos, tornei-me uma criatura sombria que desperta horrorizados olhares daqueles com quem cruzo mesmo sem nunca sequer ter dirigido uma palavra a eles.
De imediato isso me causou estranheza e me senti triste por ser visto como um ser odioso, mas com o seguir dos dias o fato passou a não mais me incomodar. Na verdade, o horror presente em seus olhos me causa, ainda, prazer.
Nasci sozinho e sozinho morrerei, esse é o destino que escolhi, com sua ajuda. Por que precisaria deles? Para quê? O que têm a me oferecer além de inveja e falsidade? Ao menos sozinho sei com quem convivo: contigo, estranha presença. Mas por que me ajudas? Nunca disseste e creio que nunca dirás.
Não sei quem és e muito menos o motivo de ter se afeiçoado a mim, mas tenho-a ao meu lado em todos os momentos, queira ou não.
Sempre a cochichar-me palavras que ressoam dentro de minha mente e penetram fundo em meu coração, jamais despertando sentimentos louváveis, somente o egoísmo de não precisar ajudar quem quer que seja e jamais necessitar de alguém para algo. Apenas eu e você, estranha presença.
Habituei-me à sua companhia e talvez tenha passado a dar-lhe mais atenção do que mereça, quando mesmo após viajar milhares de quilômetros percebi que não te afastavas de mim. Percebi que para onde eu fosse sempre a teria comigo, ainda que não quisesse.
Agora somos eu e você, em nosso mundo, nossa realidade. O que se passa lá fora não me importa, vejo somente o que se passou em minha vida com o sabor amargo do rancor diante de tudo o que me foi feito. Olho somente para mim mesmo, importo-me somente comigo.
Se tinham ou não a intenção de me magoar isso pouco me importa. Está feito e jamais se incomodaram em saber acerca de meus sentimentos. Hoje, ao amaldiçoá-los com todas as minhas forças tudo o que desejo é que sofram milhares de vezes mais do que sofri. Essa é minha vingança, e sei que cumpres o que me foi um dia prometido: fazê-los pagar.
Tens seus poderes e sei que os utiliza para vingar tudo o que me foi feito. Sou grato, infinitamente, por ao menos tu te prontificares em vingar meu sofrimento.
Amizades falsas daqueles que sempre me apunhalaram nos momentos em que precisei. Familiares odiosos que apenas desejavam se aproveitar do que me foi deixado. Sem sua preciosa ajuda continuaria acreditando que eram falhas comuns aos humanos. Graças a ti sei que devem pagar, e estão pagando, pois te encarregas disso.
O que antes incomodava passou a me ser desejável: tê-la comigo sempre. Alguém que sempre me mostra a verdade, ainda que seja dolorosa.
Por mais agradecido eu possa estar, e sabes o quanto estou, hoje algo que há muito não me recordava surgiu em meu coração. A inocência de uma criança a sorrir-me na rua, deixando de lado o horror que sempre esteve presente nos olhos das pessoas, fez-me uma lágrima escorrer dos olhos.
Um nó apertou-me a garganta e meu coração bateu descompassado rompendo aquela monotonia que há muito me acompanha. Perguntei-me se o destino que escolhi é mesmo o correto e se é realmente útil conhecer o íntimo da alma das pessoas da maneira como conheço. É mesmo possível que dentro delas só haja podridão assim como vejo? Ou distorces a realidade para ter-me somente para ti? Me alimentas com o mesmo egoísmo do qual se nutre? Desejas que eu seja assim como tu és?
Sei que não me responderás, que não atenderás meu pedido, pois um dia ele já foi feito e me negou-me, mas me atrevo novamente a fazê-lo.
Permita que, ao menos por um último dia, eu possa me enganar com as pessoas. Possa acreditar em suas mentiras, cair em suas armadilhas e me vislumbrar com iluminados sorrisos e doces palavras. Ao menos por uma vez.
Permita-me sentir uma falsa alegria, meu coração dela necessita.
Talvez atendas, mas creio que não. Me tens como uma posse, como um objeto e sei que jamais abrirás mão de mim, talvez nem mesmo após minha morte.
O motivo de te afeiçoares a mim eu desconheço, mas ainda assim eu a considero como uma amiga, uma egoísta e possessiva amiga.”

Carta encontrada no apartamento onde um corpo foi encontrado já em avançado estado de decomposição. Sua data recorria há um mês antes de sua descoberta e a identidade de seu autor será mantida sob sigilo.


3 comentários:

Deixe seu comentário.