Conto - A Última Noite

 


Se a história a seguir é ou não verdadeira, deixo a cargo de vocês...

Como já era de costume tinha sido chamado para trabalhar de última hora.

Serei hipócrita em dizer que isso me agradava, mas em tempos de crise todo dinheiro é bem-vindo, então já não me importava mais, até mesmo porque gostava de trabalhar naquele local: um belíssimo casarão, praticamente um palacete, que despertava olhares curiosos e admirados em todos que passavam defronte à ele, em um bairro nobre aqui da capital.

Sendo folguista só requisitavam meus serviços quando algum dos seguranças tinha algum imprevisto, ou para cobrir férias de algum deles, o que chegou a acontecer algumas vezes, mas geralmente eram dias avulsos.

Não tinha horário fixo para trabalhar, podia ser em qualquer um dos três turnos, mas preferia o da madrugada, entre as vinte e três e as sete da manhã, por raramente ter algum movimento no local nesse horário e eu poder ficar sozinho, ainda que a contragosto da minha mãe e da minha namorada, que consideravam a ideia apavorante.

Mas eu realmente não me importava, gostava daquele trabalho, mesmo já tendo presenciado alguns fatos bastante sinistros ali, como portas e janelas que inexplicavelmente apareciam abertas ou fechadas e luzes que se acendiam no meio da madrugada. Só isso já bastaria para fazer com que uma pessoa “normal” nunca mais pusesse os pés ali, mas como nada de ruim jamais tinha acontecido comigo eu não via nenhum problema nesses acontecimentos.

A verdade é que aquele enorme casarão exercia um inexplicável fascínio sobre mim, tanto que perdi a conta de quantas vezes sonhei com ele.

Não me importava em trabalhar ali, muito pelo contrário, chegava a ser uma honra poder percorrer tranquilamente pelos corredores, escadarias e incontáveis cômodos daquele palacete histórico quando precisava fazer a ronda, mesmo durante a escuridão da madrugada.

Mas naquela noite foi diferente.

Eu tinha chegado recentemente de uma viagem que tinha feito à cidade de Aparecida e fiquei feliz ao ser chamado para trabalhar naquela noite, tanto por estar precisando de dinheiro como por poder mais uma vez percorrer seus belíssimos salões e corredores.

Como padrão assumi meu posto e fiz a primeira ronda pela área externa, foi quando já percebi haver algo de diferente: estranhamente o crucifixo de metal que trazia no peito, preso à um cordão, estranhamente parecia se aquecer. No momento acreditei ser apenas uma impressão minha. Como tinha sido um presente da minha namorada, dado em nossa viagem, eu não estava acostumado a usá-lo.

Terminei a ronda, retornei à guarita e fiquei assistindo à vídeos no YouTube, sempre de olho nos arredores me certificando de que nenhum invasor se aventuraria pelo local, afinal era para isso que eu estava ali, com um olho no peixe e outro no gato, como se diz.

Chegou a madrugada, já deviam ser umas duas horas, quando fiz uma nova ronda pela área externa e aquele estranho incômodo reapareceu no meu peito. Me lembro de chegar a tocá-lo com a mão e ele realmente parecia quente. O que poderia ser aquilo? Um sinal? Talvez...

Àquela altura precisava também fazer a ronda pela área interna do imenso palacete, então fui até os fundos da propriedade, contornei a piscina, destranquei a enorme e pesada porta de ferro e entrei, de forma que se alguém estivesse na rua observando minha movimentação não saberia que eu tinha entrado. Uma técnica de segurança que eu utilizava.

Encostei a porta, tirei meu smartphone do bolso, acendi a lanterna e iniciei a ronda. Não achava prudente acender as luzes exatamente para não dar pista alguma sobre minha localização, e honestamente a escuridão não me incomodava.

O jogo de sombras que a luz da lanterna provocava nas inúmeras esculturas espalhadas pelo palacete me causava um misto de admiração e receio. Era bonito e ao mesmo tempo assustador, mas eu gostava daquilo tudo, daquela atmosfera sinistra, da sensação de isolamento.

Percorri tranquilamente os corredores e cômodos do piso térreo para então ir até a bela escadaria de mármore que levava ao segundo andar, onde ficavam as amplas e bem decoradas salas que equipes de moda costumavam alocar para fazerem ensaios e que naquele horário obviamente estavam vazios.

Não houve novidade alguma, me sentia inebriado por aquela atmosfera, como se eu fosse um rei naquele palacete de escuridão e riqueza, e então fui para o terceiro e último andar, que raramente era aberto ao público, por uma escadaria de madeira escura, acredito ser mogno, escondida quase no final de um dos corredores.

Cheguei ao meu destino, cujo teto baixo do longo corredor quase fazia com que eu precisasse me abaixar, ainda mais escuro pela completa ausência de janelas, até alcançar o que chamamos de “sala do coronel”, por ser o local onde o já falecido coronel, responsável pela construção do palacete, costumava fazer reuniões com figurões da época.

O enorme salão, com sua imensa mesa ao centro e a decoração, remetia ainda mais que os demais cômodos à época do imperialismo, ainda que o palacete não fosse tão antigo assim. Suas amplas janelas de madeira, por estarem fechadas, permitiam que apenas uma débil claridade entrasse, o que era insuficiente para que eu desligasse a lanterna.

Caminhei lentamente até o outro lado, contornando a imensa mesa, e foi nesse momento que tudo pareceu desandar.

O crucifixo em meu peito esquentou de tal maneira que pude senti-lo me queimar e quando fiz menção de tirá-lo meu smartphone simplesmente desligou. Por quê? O religuei e verifiquei que a bateria estava em oitenta por cento, mas novamente ele desligou, como se algo quisesse me impedir de enxergar o salão com clareza.

O terror finalmente tomou conta de mim e a única coisa que eu queria era sair dali o mais rápido possível, o que faria facilmente por já conhecer o caminho praticamente decor. Foi quando minha visão turvou, senti minha cabeça rodopiar, e quando me dei conta já estava escorado em uma das paredes, suando muito, com a respiração ofegante e me esforçando para não cair.

Não era pelo pânico que tomou conta de mim, a atmosfera daquele lugar tinha se tornado densa, pesada, como se quisesse me sufocar. Por um instante era como se eu não estivesse mais ali naquele palacete que tanto admirava e respeitava, mas sim sido transportado para outro lugar, um lugar maligno e que ninguém deveria ir.

À essa altura eu já tinha perdido completamente a noção de direção, não sabia mais como chegar ao corredor e à escadaria de madeira e meus olhos arregalados percorriam a escuridão tentando encontrar algum ponto que me servisse de referência para que pudesse sair dali.

Eu já estava desesperado, mas meu pavor aumentou ainda mais quando nitidamente vi sentado na ponta da mesa, do outro lado, um vulto com uma das mãos no queixo e o que deveria ser um charuto na outra, olhando fixamente para mim. Mesmo em meio à escuridão senti como se nossos olhares se encontrassem, e foi quando uma voz grave e estrondosa ecoou por todo o salão “Eras bem-vindo aqui, eu gostava de ti, até o instante em que o trouxeste aqui para dentro, maldito sejas”.

Senti como se o crucifixo em meu peito estivesse em brasa e não sei dizer se pela dor que isso me causou, pelo pavor que tomou conta de mim ou pela vontade daquela entidade maligna sentada à mesa, mas quando me dei conta estava acordando com a luz do sol entrando pelas frestas das imensas janelas.

Deitado no caro tapete do salão sentia todo o meu corpo doer como jamais tinha doído antes e meu peito ardia. Me sentei com dificuldade e vi, atônito, meu smartphone e o crucifixo caídos ao meu lado.

Aquilo tudo definitivamente não tinha sido um sonho, eles eram a prova disso, ou talvez eu tivesse tido alguma espécie de surto. Não sei dizer, tudo foi muito real para que eu considere alguma dessas possibilidades.

Todo meu corpo doía muito como se eu tivesse levado uma surra. Não foi fácil sair do palacete e voltar para a guarita, assim como não foi fácil tomar a decisão de que nunca mais eu voltaria àquele lugar outra vez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário.