Conto - Uma Lenda do Interior...



Em uma cidadezinha no interior de São Paulo, onde eu costumava passar minhas férias, tive uma experiência sobrenatural que até hoje me dá medo só de lembrar. 


Lá em Birigui, mora minha avó materna, algumas tias, além de minha afilhada. 

Meus pais também têm uma casa lá.

O cemitério da cidade é bem cuidado e um lugar que eu sempre gostei de visitar, quando viajava para a cidade. Com esculturas de anjos e santos, o local é bastante visitado pela minha família, desde quando meu avô passou a "morar" por lá, sepultado. 

Confesso que este cemitério me atrai mais pelas histórias e lendas que o rodeiam, do que por suas esculturas, que são muito belas, mas não fazem minha cabeça.

Uma dessas lendas envolve o túmulo de um menino chamado "Raimundo Carvalho", que morreu bem antes do meu nascimento, nos anos 80. 

Não sei muito da história dele, mas pelo pouco que soube o menino ficou bastante doente e alguns médicos não quiseram cuidar dele por se tratar de uma doença contagiosa e mortal. Por causa disso Raimundo faleceu ainda criança e foi sepultado em um jazigo pequeno nesse cemitério da cidade. Algum tempo depois seu túmulo foi reformado com azulejos azuis e ganhou uma foto, onde ele aparecia vestido com uma roupa cheia de bordados.

Sempre acompanhei as lendas e os contos desse menino, que virou uma espécie de santo popular pelas redondezas. Algumas mães aflitas com a maternidade precoce rogavam para Raimundo, pedindo ajuda para que seus filhos pequenos deixassem a mamadeira ou o hábito da chupeta. Ao alcançar as tais "graças", essas mães deixavam balas no túmulo do menino e até alguns brinquedos de seus filhos, como forma de agradecimento. 

Claro que, para os mais céticos, essas bugigangas só serviam para dar mais trabalho aos faxineiros do cemitério, que tinham que limpar toda aquela "oferenda". Para os mais espiritualistas, as doações refletiam uma forma material de gratidão e oferta ao menino que morreu de maneira tão precoce.

No dia de finados o cemitério ficava lotado, com missas e celebrações acontecendo durante todo o dia. Lembro-me que, nessas datas, o túmulo do Raimundinho (assim ele ficou conhecido) ficava repleto de doces, inclusive balas de iogurte que eu adorava, porém nunca tive coragem de pegar uma e comer. Chupetas coloridas também ficavam ao lado dos doces e algumas velas, tudo sobre o túmulo do menino. Com o passar do tempo construíram uma mini capela bem em frente o túmulo do pequeno, que se estivesse vivo hoje, seria um adulto quase idoso.

Certo dia levei minha câmera de vídeo ao cemitério para gravar o túmulo do Raimundinho, que para mim, era visita obrigatória durante minhas férias. Gravei as balas, as velas e inclusive a foto do menininho morto. Acompanhado dos meus irmãos e de alguns primos, me divertia fazendo imagens daquela lenda viva. Dei até “zoom” na fotinho dele. Meu irmão brincou:

- Você não trouxe balas para o Raimundinho, ele vai te cobrar pela filmagem.

Tentei me desvencilhar dessa afirmação tosca:

- Imagina. Raimundinho não faria isso. - respondi.

Confesso que um pequeno calafrio percorreu minha espinha, porém, fui me entreter com outro túmulo, sem dar importância à gracinha do meu irmão.

Sei que, nesse dia, consegui com "exclusividade", imagens de um coveiro, enquanto ele fazia uma exumação, ou melhor, uma "desossada", como ele mesmo descreveu. Perguntei se ele não tinha medo das tarefas de sua profissão e, logo, ele disparou "Tem que ter medo é dos vivos, né fio!? Morto não faz mal pra ninguém". Não sei se concordei muito com isso, mas pra que criar um debate a respeito? O cara já trabalha lá há muitos anos, tinha mais experiência que eu naquele assunto.

Naquele mesmo dia, após sairmos do cemitério, tomei banho e, junto com minha mãe, fui visitar uma prima.

Cristina, a prima, tem seis filhos de seis pais diferentes. Cinco, pois dois deles são gêmeos, porém um desses gêmeos morreu logo após o parto.

Um deles, o mais novinho, me pediu para comprar doces. Comprei uma boa quantia de balas e distribuí entre eles. Fiquei um tempo por lá e depois fui embora para a casa de meus pais.

Neste dia apenas minha mãe e eu dormimos em casa. Ela, no quarto dela e eu num quarto nos fundos, colchão no chão.

Lembro-me exatamente que acordei de supetão à meia-noite e quarenta e dois minutos. Ouvia algumas pessoas conversando na rua e me virei para dormir novamente. Dormi. Acordei de novo às duas da madrugada. Olhei as horas no celular e a luz da tela iluminou todo o quarto. 

Uma pequena luz na escuridão ilumina um mundo inteiro.

Fechei os olhos para voltar a dormir, mas o sono se foi, quando percebi que barulhos ocos surtiam da parede. Era como se alguém batesse com as mãos fechadas, parasse e depois batesse ainda mais forte. Em um certo momento tive a impressão de que algo caminhava pelo teto. Um ruído contínuo se alternava em velocidade, ora mais lento, ora mais rápido, porém, não cessava. Tentei me convencer de que era um gato no forro (e eu realmente quis que fosse um gato no forro), mas não adiantou. Fiquei amedrontado. 

Nenhum cachorro latia na rua, não se ouvia mais nenhuma conversa. O silêncio era quebrado somente pelos “passos” na parede. De vez em quando eu acendia o celular para iluminar o quarto e corria com a luz pelos cantos, com medo de ver alguém agachado aos pés do colchão onde eu dormia.

Fechei os olhos e o barulho na parede tornou-se quase inaudível, mas no silêncio da noite, era audível. Penosamente audível.

Tomei coragem e me levantei. Fui ao quarto onde minha mãe dormia pesadamente. Chamei uma, duas e na terceira vez ela, assustada, perguntou o que eu queria. Questionei quem morava nas casas ao lado da nossa.

- Do lado direito mora um casal, disse com a voz cansada. Do outro, é um terreno baldio.

Fiquei momentaneamente aliviado, o barulho vinha da casa onde morava o tal casal.

- Péssimo horário que o filho desse casal escolheu para brincar. - eu disse, numa tentativa de amenizar o medo.

Mamãe, em seu sono pesado, afirmou com a voz rouca, que o casal não tinha filhos e mesmo que o tivesse, era impossível alguém brincar àquela hora da madrugada, pois estavam viajando. Meu medo virou desespero, mas não até o momento em que, em seu quase sonho, minha mãe soltou:

- Você fica filmando cemitério, "algo" deve ter vindo junto com a filmagem. - e virou para o lado, dormindo quase que imediatamente.

Nessa hora, a imagem de Raimundinho vestido com roupas de época em sua foto no túmulo brilhou nitidamente em minha mente. O pavor dominou-me.

Fiquei mudo e voltei para meu colchão, cambaleando, sentindo um oco no estômago.

A cada dois minutos acendia a luz do celular para iluminar o quarto. Meu medo era tão grande que nem percebi que era quase três da madrugada. 

Resolvi levantar novamente e apagar a gravação feita no cemitério. Sem querer, acabei dando "play" na câmera e a voz do meu irmão ressoou:

"Você não trouxe balas para o Raimundinho, ele vai te cobrar" e sem perceber, eu pausei a gravação na foto do morto estampada na tela, iluminando meu rosto, me encarando.

"... ele vai te cobrar", eu ouvia em minha mente.

Em uma atitude desesperada comecei a rezar, enquanto corria os dedos pelo teclado da câmera na tentativa de apagar o mais rápido possível aquela gravação.

"...ele vai te cobrar, os doces..."

Tamanho era o meu pavor que eu tive vontade de chorar.

"Você não trouxe balas para o Raimundinho..."

Entre um "pai-nosso" e outro, balbuciei:

- Raimundinho, se for você que está batendo nas paredes, eu não levei bala para o seu túmulo, mas comprei doces para os filhos da Cristina... eles também são crianças, como você.

Não sei se adiantou, ou se foi a oração, as balas ou a promessa íntima em apagar aquela gravação, mas após alguns segundos eu já não ouvia mais os sons na parede. A tela da câmera continuava acesa, porém, agora com uma tela azul, escrito “formatação concluída”.

Desliguei a câmera e fui deitar ainda com medo, porém, não escutava mais nada na casa. 

Senti um certo alívio ao ter apagado tudo o que eu tinha gravado no cemitério, no dia anterior.

Se era o espírito do Raimundinho, ou algum gato, eu não sei, mas não ouvi mais nenhum barulho pelo resto da noite.



Yves Thorn

Biografia

Yves Thorn - Formado em História pela PUC-RS possui obras que são fruto de pesquisas realizadas acerca de locais assombrados no Brasil e no mundo.
Também se dedica ao estudo de casos ufológicos e está preparando obras sobre o assunto.
Lançou, ainda, quatro trabalhos baseados em traduções de clássicos do horror mundial: Edgar Allan Poe e Howard Phillips Lovecraft.
Página Oficial: http://yvesthornwriter.wix.com/books
E-mail de contato: yvesthornwriter@gmail.com



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