Conto - Uma Páscoa Feliz.

coelho macabro - Prisioneiro da Eternidade

Saudações visitante do prisioneiro.
Tenho essa noite um conto especial para a Páscoa.
Espero que goste.

Todos os dias Lima presenciava aquelas cenas, e elas lhe dilaceravam o coração.
A pequena comunidade carente (que na verdade se assemelhava mais a um loteamento clandestino) ficava no caminho entre sua casa e o trabalho, de forma que diariamente passava defronte a ela.
Sentia-se mal com o que via de dentro de seu belo carro do ano: dúzias de crianças brincando inocentes em meio a cães sarnentos e imundos que perambulavam entre elas. Descalças e sujas elas corriam e rolavam pelo chão barrento soltando gargalhadas que destoavam diante da condição miserável em que se encontravam. Quantas noites não teriam ido dormir com o estômago queimando de fome enquanto os pais alcoolizados encomendavam, de forma inconseqüente, mais um irmão? Para elas a miserável condição em que se encontravam não parecia importar e a alegria que carregavam nos olhos era comovente.
Revolta, remorso, pena... Lima não seria capaz de enumerar o turbilhão de sentimentos que atormentavam a alma e o coração.
Mas deveria sentir-se daquele jeito? Que culpa tinha de ter uma condição de vida razoável e elas não? Seria mesmo aquela gente as “coitadinhas” da história, vítimas da sociedade ou, de alguma maneira, merecedoras daquilo tudo? Seria fruto de “karma”? Quem saberia dizer?
Por que sentir-se culpado se tudo o que conquistara na vida fora graças a muito trabalho, sem prejudicar ninguém? Tanto trabalhou que sua esposa fora embora com os dois filhos alegando não receber a atenção que mereciam.
Seu coração apertava, por mais que ele tentasse se conscientizar de que a culpa não era dele, sentia-se mal. Saudade da ex-esposa e dos filhos e tristeza diante daquilo que via todos os dias. Não pelos adultos, que muitas vezes se acomodavam com a pouca ajuda prestada pelo governo e pelas doações recebidas. Por que se esforçar se recebiam o mínimo para a sobrevivência? Por que se preocupar com o futuro dos filhos se ninguém pensou no deles, quando crianças?
Lima se consumia num misto de raiva e pena.
Não trabalhava no governo, não tinha influência alguma na política e não acreditava em ONG´s que diziam ajudar os menos favorecidos, então o que fazer? Dar dinheiro àquelas crianças na ânsia de tornar sua consciência menos pesada? Provavelmente os trocados iriam parar nas mãos dos pais que comprariam cachaça, cigarro ou drogas. Não, dar dinheiro não era a saída. Mas o que fazer então?
Durante vários dias ele refletiu sobre uma forma de ajudar aqueles pequeninos. Que futuro eles poderiam ter? O que lhes reservava a vida? Lima tinha um nível de vida era confortável, mas não o suficiente para dar conta de mudar a vida de todas aquelas crianças.
Certo dia veio-lhe à mente que o domingo de Páscoa estava se aproximando. Sim, talvez não pudesse alterar o futuro delas, mas proporcionar ao menos alguns instantes de alegria diante do desejado ovo de chocolate, isso ele seria capaz de fazer. Ao menos faria algo, não ficaria de braços cruzados.
Lima, então um pouco aliviado, comentou sobre sua ideia com Edgar, seu vizinho.
Edgar há vários meses se isolara do convívio social após o assassinato de sua esposa e filhos durante um assalto nas imediações. Fato trágico, mas que fora superado com resignação, embora nunca mais tenha sido o mesmo após a tragédia. 
Mantinham uma amizade de anos e talvez ele pudesse ajudá-lo na empreitada de Páscoa.
“Lhe fará bem um ato de bondade, aliviará a amargura que envenena sua alma.” Disse ele ao vizinho.
Edgar refletiu um pouco sobre as palavras de Lima e aprovou a benevolente ideia. Mais, se prontificou a ir atrás de quem pudesse confeccionar os ovos por um valor bem em conta.
No dia seguinte Edgar apareceu já com o nome de alguém que havia se prontificado em ajudá-los por um valor irrisório: Estela, sua cunhada, irmã da falecida esposa. Ela não cobraria nada para fazer os ovos de chocolate, apenas necessitava dos ingredientes, a mão de obra ficaria inteiramente por sua conta.
“Serão feitos cheios de amor, repletos do mais profundo sentimento que nutro por elas, assim talvez possamos amenizar um pouco o sofrimento daquelas doces e inocentes criaturinhas.” Afirmou a mulher, com voz doce e um amável sorriso.
“A Corrente do Bem.”, Batizou Lima aquele elo de três pessoas dispostas a dar um pouco de alegria às crianças carentes daquela comunidade.
Após alguns dias de trabalho duro enfim chegou a data de entregarem os muitos ovos de chocolate. Quase três caixas com ovos de, em média, 350 gramas cada. 
Eram suficientes para a alegria daquelas crianças. Com um estardalhaço elas se aproximaram do carro de Lima assim que ele adentrou pelo barrento chão da comunidade. 
Edgar e a cunhada preferiram não ir e deixaram o “melhor da festa” para Lima, diziam que já tinham feito o bastante e estavam satisfeitos com tão nobre gesto, haviam cumprido seu papel na “Corrente do Bem”.
Feliz, Lima distribuiu os ovos àquelas crianças. Elas não se continham de tanta alegria, ainda que sob o olhar desconfiado dos pais. Olhavam, de longe, aquele homem desconhecido que surgira como semeador da alegria entre seus filhos.
Uma cena comovente: as crianças, com o presente nas mãos, beijavam e abraçavam Lima, que refreava as lágrimas que insistiam em escorrer.
Ao longe não eram apenas os pais desconfiados que testemunhavam a cena, entidades nefastas assistiam tudo aguardando o desfecho dos acontecimentos.
O homem foi abraçado e acariciado como há muito não acontecia. Sim, aquelas crianças, mesmo diante de tanta dificuldade, eram capazes de demonstrar carinho. 
Vinha-lhe à mente os filhos que não via há anos por terem ido morar no exterior com a mãe e o padrasto. Saudade.
Terminada então a entrega ele se despediu das numerosas crianças (e de alguns adolescentes que se aproveitaram da situação) e retornou ao seu lar cheio de indescritível alegria.
Estava ansioso para compartilhá-la com o amigo Edgar, no entanto ele parecia não estar em casa. Luzes apagadas e silêncio. Onde teria ido?
Tamanha era a alegria que Lima precisava dividi-la com alguém, foi então até a casa de Estela, mas ninguém respondeu ao toque da campainha. Tudo apagado, somente os cães raivosos se debatiam nas grades do portão na ânsia de abocanhá-lo.
Lima retornou então ao aconchego do seu lar e, realizado, deitou-se e acabou adormecendo.
Ao contrário do que ele esperava, não foram horas de descanso tranquilas. Um confuso pesadelo o atormentou de forma incessante. Cenas confusas onde ele era acusado de assassinato, chamado de monstro e depredado tanto física quanto moralmente por toda a sociedade.
“Velando” suas horas de sono, espíritos envoltos pela escuridão se deliciavam com o sofrimento do benevolente Lima, aguardando ansiosamente pelas próximas horas.
Já era noite quando ele acordou, ofegante e suado.
Cambaleou até a sala, ainda zonzo pela tempestade de ofensas que recebera naquele inexplicável pesadelo, ligou a televisão e foi até a cozinha pegar uma cerveja.
Retornando à sala Lima ficou paralisado diante das cenas exibidas pelo aparelho: médicos, voluntários e bombeiros se esforçando para dar conta de socorrer dezenas de crianças. Algumas acomodadas em macas e outras se contorcendo pelo chão. As que ainda mantinham a consciência vomitavam sangue em golfadas volumosas e repulsivas, enquanto outras aparentemente já não possuíam mais vida.
Ao invés das infantis gargalhadas elas emitiam gemidos de dor que as tornavam semelhantes a animais ou monstros. Urravam, gemiam e grunhiam enquanto os semi-alcoolizados pais caminhavam desnorteados sem saber o que fazer. Terríveis cenas que exemplificariam uma zona de guerra, ou o inferno.
Lima estava horrorizado, não conseguiu segurar o choro, estático, em pé, diante do aparelho que lhe esfregava na cara todo aquele horror. O que era aquilo? Em uma data feliz como aquela, domingo de Páscoa, o que estaria acontecendo com aquelas crianças?
Então a realidade foi-lhe esfregada na cara de forma implacável: o repórter se aproximou de uma das desesperadas mães fazendo com que Lima fosse arremessado em um abismo de dor interminável.
-Um careca filho da puta deu ovo envenenado pras criança!! – esbravejava a mãe.
Em seu colo, agora sem vida, uma das crianças que ele presenteara com os ovos e abraçara na última tarde.



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