Conto - Último Recurso: A Evocação.

Satanismo

Um novo conto para aquecer essa madrugada fria.

Divirta-se.

Um barraco como tantos outros espalhados pelas cidades do mundo e dentro dele uma família, como incontáveis outras, luta dia a dia pelo direito de sobreviver.
Uma vida miserável onde não há futuro para ele, a esposa ou os filhos. Necessidades inenarráveis somadas ao descaso de todos para com sua condição e a de sua família levam-no a desistir de esperar por uma providência divina e abandonar a esperança de que dias melhores possam vir.
Sem alternativa ele decide, sem saber, enveredar pelos sinistros caminhos da escuridão.
O pedaço de papel que recebera de sua avó momentos antes do seu falecimento parece ser a chave para que deixe de uma vez por todas aquela existência miserável.
-Nunca tive coragem para tanto, meu neto, mas não acho justo guardar isso comigo. Tome, talvez um dia você precise, e tenha coragem suficiente. – foram as palavras da anciã ao lhe entregar o papel.
Muitos anos se passaram desde o sepultamento da amada avó e casualmente ele reencontrara aquele papel no meio de uma caixa de quinquilharias.
-Papai, tô com fome. – seu filho de seis anos reclama enquanto ele vasculha a caixa.
-Papai vai cozinhar um pouco de arroz tá bom? – seus olhos se enchem de lágrimas.
-Arroz de novo papai? Eu queria salsicha...
Ele nada responde, a garganta apertada o impede de dizer alguma coisa.
-Papai, tô com fome! – a criança insiste.
-Vá brincar com seus irmãos, o papai vai fazer alguma coisa pra gente.
-Tá bom papai. Mamãe vai demorar?
-Acho que não, o centro de reciclagem já fechou a essa hora. Vai brincar, vai.
O garoto sai do quarto, choramingando.
Lendo mais uma vez o conteúdo do papel um arrepio lhe sobe pela espinha.
Funestas instruções acompanhadas de algo que parece ser uma oração em um idioma por ele desconhecido.
Consigo mesmo ele parece não mais se importar, consciente de que utilizara sua juventude apenas para saciar seus mais vis desejos. Sua preocupação é com os filhos e a esposa, que não têm culpa dos seus desvios de conduta.
Não, eles não trilhariam uma vida sofrida como a dele, não por causa das tolices que praticara no passado.
Ainda que as instruções deixadas pela avó sejam contra a pouca moral que ainda nutre, ele decide seguir em frente.
Seguindo as orientações do papel, em alguns dias, ele providencia em segredo os apetrechos conforme a orientação.
           

Em uma magnífica noite de lua cheia ele deixa a esposa e os filhos em casa, e sorrateiramente arrasta uma jovem pelo chão barrento em um matagal rumo a uma velha casa que outrora fora sede de uma chácara, há muito abandonada.
Inconsciente, ela sequer imagina o que aquele homem pretende.
Logo eles chegam ao macabro destino. O local já está preparado, o crime fora devidamente premeditado durante vários dias.
Velas, símbolos desconhecidos e algumas tigelas. Tudo disposto sobre o chão de madeira formando uma espécie de altar, onde o transtornado homem pretende pôr fim ao sofrimento dele e de sua família, colocando ao centro o corpo da jovem, que amordaçada e imobilizada por cordas não tem como se defender.
O horror estampado em seus olhos, assim que acorda, é insuficiente para despertar compaixão naquele que era seu vizinho já há muitos anos.
-Fique quietinha, vai ser rápido. – foram as únicas palavras do homem que então se ajoelha ao seu lado.
Seus olhos angustiados imploram por clemência, mas é ignorado pelo seu algoz que prossegue com as instruções que está obedecendo.
Desesperada ela então se debate na vã tentativa de impedir que o pior aconteça. Sua atitude parece atrapalhar a concentração do homem e ele deixa seus olhos transparecerem uma bestialidade incomum, e se voltam para ela.
-Disse para ficar quieta! – ele grita ao mesmo tempo em que desfere um terrível soco em seu rosto, deixando-a atordoada.
Ao ser desembrulhado de um pedaço de pano um belo punhal é revelado. O homem o segura contra o peito enquanto passa a ler as palavras contidas no pedaço de papel:

Supplex obtulit hunc sanguinem
ferat me aspexerit.
Mihi deservit dignum animo.
Hic iaces adsum
hunc sanguinem offerens
et anima mea
modo vicissim desiderium meum impleatur.
Trado quod sum
Trado mundi
in somnis mihi commercium.

Ao finalizar a leitura, sem fazer a menor idéia do que aquilo signifique, ele faz com que a fria lâmina do punhal finalmente alcance o coração da inocente moça.
Impossibilitada de gritar ela apenas definha lentamente enquanto seus batimentos cardíacos deixam de existir.
O sangue jorra abundante do ferimento e o transtornado homem recolhe um pouco dele em uma enferrujada taça, para logo em seguida salpicá-lo com um misterioso pó.
A taça, então, é solenemente disposta ao lado do já inerte corpo da vítima enquanto o homem passa a proferir novamente as palavras anotadas.
Uma, duas, três vezes...
Temendo que aquele ato tresloucado possa ter sido em vão, lágrimas passam a percorrer a face barbuda do homem que prossegue repetindo as estranhas palavras.
Nada acontece.
-Maldição... – murmura ele soluçando e se levantando enquanto contempla a barbárie cometida.
-Exatamente, uma maldição. – uma voz estrondosa ecoa pela sala suja fazendo com que ele se apavore.
-Quem tá aí? O que você quer? – ele indaga temendo que seu ato possua uma testemunha que desgrace por completo sua vida.
O silêncio que se segue deixa o homem fora de si e quando ele faz menção de abandonar o lugar, percebe algo acontecendo.
Do outro lado do corpo da jovem uma nuvem de poeira sobe do chão em um redemoinho funesto e parece se aglutinar formando uma figura humana.
Atônito, ele apenas observa o decorrer dos acontecimentos. Seus olhos não acreditam no que se passa.
-Jesus, que merda é essa?
A estranha criatura disforme que surge diante dele decide então responder às suas últimas perguntas, agora, com um tom mais humano.
-Meu nome... Creio que seja desnecessário eu lhe dizer, uma vez que dificilmente você o saberá pronunciar da maneira correta, fato que me irrita muito. O que quero? Apenas o que me ofereceu, nada mais que isso.
O homem então se dá conta de que não faz a menor idéia do que disse com as palavras que lera no papel.
-Mas como assim? Eu apenas recitei uma oração, quem diabos é você?
-É verdade, uma oração, podemos dizer que seja isso mesmo. Mas uma simples oração não me traria aqui. Devo agradecer a essa bela menina... Ah sim, e não se refira à mim como um “diabo”, isso me diminui diante do que realmente sou.
O vulto acaricia, com um dos pés, o corpo do cadáver à sua frente.
-O que eu fiz? O que é você? – o homem segura firme o punhal na ânsia de se defender, o pânico parece tomar conta dele.
Um sarcástico sorriso surge na criatura ao mesmo tempo em que o homem emite um longo e profundo grito de dor.
Seu corpo parece não mais responder aos seus comandos e a arma cai no assoalho ao mesmo tempo em que seu corpo começa a tremer como se recebesse uma descarga elétrica. Seus olhos reviram e sua língua revolta tenta escapar-lhe pela boca em uma espécie de convulsão terrível.
A figura apenas o observa, indiferente, até que o homem em colapso parece ficar sem vida quando finalmente cai no chão.
A tétrica figura então desaparece.
O silêncio mais uma vez invade o lugar e, logo, o autor do sacrifício se levanta trazendo no rosto não mais o ar sofrido de momentos antes, mas sim, um sorriso sarcástico.


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