Conto - O Esquecido

 

O Esquecido

Trago-lhes um conto que, mesmo fictício, infelizmente reflete a realidade de muitas pessoas...

O Esquecido

Encostado naquela parede fria, tragado pela escuridão que só não era total graças à débil luminosidade que vinha dos postes na rua próxima, ele enfim se deu conta de que tinha chegado a hora de seu organismo cobrar por todos os excessos que cometeu durante toda a vida.

Já tinha sido avisado inúmeras vezes daquilo que o aguardava, tanto pelo próprio corpo quanto pelas pessoas próximas à ele, mas nunca deu atenção.

Por quê?

Talvez por se sentir imune à tudo o que poderia lhe acontecer, ou por pura ignorância, mas o mais provável era que fosse pela força que seus vícios exerciam sobre ele, tornando-o incapaz de resistir à elas.

Triste?

Sim, sua situação era realmente lamentável, mas ao virar as costas a todos os que um dia o tentaram ajudar, se fazendo de surdo para os avisos que lhe foram dados, muitas vezes com um enojante sorriso sarcástico, ele selou seu destino.

Ninguém além dele mesmo poderia ter mudado o rumo da sua vida, cada um é responsável pelas próprias escolhas, por mais difíceis que elas sejam.

Suas atitudes egoístas, mentirosas e inconsequentes, muitas vezes até mesmo violentas, fizeram com que a convivência se tornasse insuportável e o que lhe restou foi ficar à mercê da própria sorte, ou poderia se dizer: da própria desgraça.

Ele não tinha muito tempo de vida, o frio que aos poucos lhe dominava o corpo mostrava que sua essência já se desprendia do corpo físico.

Arrepender-se de tudo o que fez? Àquela altura de que isso adiantaria após uma vida toda atormentando aqueles que eram obrigados a conviverem com ele?

Após toda uma vida de indiferença e, muitas vezes, até mesmo de desrespeito, talvez até mesmo Deus o tivesse esquecido ali.

Mãe, irmãos, filhos, nada disso jamais teve importância para ele, sua única preocupação foi satisfazer seus desejos mais bestiais e primitivos.

Com sua essência abandonando o corpo o véu das limitações físicas se dissipava, lhe permitindo perceber com mais intensidade coisas com as quais nunca se importou, como o adocicado perfume de flores que era trazido pela fria brisa que timidamente invadia aquela viela decrépita onde estava.

Respirou fundo e tentou se levantar, mas as penas não mais o obedeciam.

Olhou para o alto. As estrelas brilhavam mais intensamente, como se estivessem mais próximas. Debilmente levantou uma das mãos tentando tocá-las e nesse instante ouviu insanas gargalhadas ao seu redor.

Ele já adentrava uma outra realidade.

Assustado, sentindo a respiração falhar e um amargo líquido lhe subindo pela garganta, percebeu que, ao contrário do que imaginava, não estava sozinho.

Ele nunca se deu conta disso, mas na verdade jamais esteve. Em toda sua deplorável existência sempre teve a companhia de entidades nefastas, aquelas que, naquele momento derradeiro, insistiam em lhe sugar até a última gota de vida.

O líquido amargo que lhe inundava a boca o impedia de dizer algo e a única coisa que conseguiu foi deixar lágrimas escorrerem pelo rosto pálido e carcomido.

“Teremos que encontrar outro, mas eu gostava desse aí, era abundante”, resmungou uma delas, “Até que durou muito pelo tanto de merdas que fazia”, completou uma outra.

Oriundas de algum lado obscuro da existência as entidades o olhavam com certa impaciência. O rapaz que agora ali definhava, ao contrário do que acontecera até então, parecia já não lhes ter nenhuma serventia.

“O Mestre vai gostar desse aí”, uma delas chutou jocosamente a perna do moribundo, “Vai, esse aí é bem fechadinho ainda”, gargalhou a outra, no que foi acompanhada pelas demais, “É, ainda...”, concluiu a primeira, também se deleitando com a situação.

O que o futuro poderia reservar àquele que durante toda a vida jamais se preocupou com nada além de si mesmo?

Difícil afirmar com exatidão, mas certamente é algo que nenhum de nós gostaríamos de descobrir.

Após alguns dias um corpo já em avançado estado de putrefação foi encontrado naquela viela imunda, um que ninguém nunca se importou sequer em identificar.

Era alguém que foi esquecido tanto pelas outras pessoas quanto por si mesmo.   


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