O Esquecido
Encostado
naquela parede fria, tragado pela escuridão que só não era total graças à débil
luminosidade que vinha dos postes na rua próxima, ele enfim se deu conta de que
tinha chegado a hora de seu organismo cobrar por todos os excessos que cometeu
durante toda a vida.
Já
tinha sido avisado inúmeras vezes daquilo que o aguardava, tanto pelo próprio corpo
quanto pelas pessoas próximas à ele, mas nunca deu atenção.
Por
quê?
Talvez
por se sentir imune à tudo o que poderia lhe acontecer, ou por pura ignorância,
mas o mais provável era que fosse pela força que seus vícios exerciam sobre ele,
tornando-o incapaz de resistir à elas.
Triste?
Sim,
sua situação era realmente lamentável, mas ao virar as costas a todos os que um
dia o tentaram ajudar, se fazendo de surdo para os avisos que lhe foram dados,
muitas vezes com um enojante sorriso sarcástico, ele selou seu destino.
Ninguém
além dele mesmo poderia ter mudado o rumo da sua vida, cada um é responsável
pelas próprias escolhas, por mais difíceis que elas sejam.
Suas
atitudes egoístas, mentirosas e inconsequentes, muitas vezes até mesmo
violentas, fizeram com que a convivência se tornasse insuportável e o que lhe
restou foi ficar à mercê da própria sorte, ou poderia se dizer: da própria desgraça.
Ele
não tinha muito tempo de vida, o frio que aos poucos lhe dominava o corpo
mostrava que sua essência já se desprendia do corpo físico.
Arrepender-se
de tudo o que fez? Àquela altura de que isso adiantaria após uma vida toda
atormentando aqueles que eram obrigados a conviverem com ele?
Após
toda uma vida de indiferença e, muitas vezes, até mesmo de desrespeito, talvez
até mesmo Deus o tivesse esquecido ali.
Mãe,
irmãos, filhos, nada disso jamais teve importância para ele, sua única
preocupação foi satisfazer seus desejos mais bestiais e primitivos.
Com
sua essência abandonando o corpo o véu das limitações físicas se dissipava, lhe
permitindo perceber com mais intensidade coisas com as quais nunca se importou,
como o adocicado perfume de flores que era trazido pela fria brisa que
timidamente invadia aquela viela decrépita onde estava.
Respirou
fundo e tentou se levantar, mas as penas não mais o obedeciam.
Olhou
para o alto. As estrelas brilhavam mais intensamente, como se estivessem mais
próximas. Debilmente levantou uma das mãos tentando tocá-las e nesse instante
ouviu insanas gargalhadas ao seu redor.
Ele já
adentrava uma outra realidade.
Assustado,
sentindo a respiração falhar e um amargo líquido lhe subindo pela garganta, percebeu
que, ao contrário do que imaginava, não estava sozinho.
Ele
nunca se deu conta disso, mas na verdade jamais esteve. Em toda sua deplorável
existência sempre teve a companhia de entidades nefastas, aquelas que, naquele
momento derradeiro, insistiam em lhe sugar até a última gota de vida.
O
líquido amargo que lhe inundava a boca o impedia de dizer algo e a única coisa
que conseguiu foi deixar lágrimas escorrerem pelo rosto pálido e carcomido.
“Teremos
que encontrar outro, mas eu gostava desse aí, era abundante”, resmungou uma
delas, “Até que durou muito pelo tanto de merdas que fazia”, completou uma
outra.
Oriundas
de algum lado obscuro da existência as entidades o olhavam com certa
impaciência. O rapaz que agora ali definhava, ao contrário do que acontecera até
então, parecia já não lhes ter nenhuma serventia.
“O
Mestre vai gostar desse aí”, uma delas chutou jocosamente a perna do moribundo,
“Vai, esse aí é bem fechadinho ainda”, gargalhou a outra, no que foi acompanhada
pelas demais, “É, ainda...”, concluiu a primeira, também se deleitando com a
situação.
O que
o futuro poderia reservar àquele que durante toda a vida jamais se preocupou
com nada além de si mesmo?
Difícil
afirmar com exatidão, mas certamente é algo que nenhum de nós gostaríamos de
descobrir.
Após
alguns dias um corpo já em avançado estado de putrefação foi encontrado naquela
viela imunda, um que ninguém nunca se importou sequer em identificar.
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