Conto - Apartamento 103

 

Apartamento 103

Tenha muito cuidado com onde você escolhe morar...

A antiga porta sanfonada do elevador então se abriu, olhou para a direita e se deparou com aquele corredor longo, escuro e completamente revestido em mármore que mais se parecia com um mausoléu do que com um prédio residencial.

Essa era a lembrança que tinha daquele lugar: a de que era um mausoléu para enterrar pessoas vivas, no décimo andar, o último daquele prédio antigo, onde mal se podia ouvir os sons da movimentada avenida no centro da cidade. 

Com passos lentos, a contragosto, seguiu com a pesada mala até o número 103, no final daquele interminável e frio corredor que, mesmo à luz do dia, permanecia na penumbra.

Assim que abriu a porta e ouviu o rangido das dobradiças Kelly baixou a cabeça e suspirou. Aquele era o último lugar onde queria estar.

Por que a vida a fizera retornar àquele local que lhe fazia tão mal? O que tinha feito para merecer aquilo?

Ali tinha vivido toda a infância e boa parte da adolescência, até o rompimento com os pais, quando decidiu seguir sua vida com as próprias pernas e se livrar daquilo que considerava uma prisão sem grades.

Tinha um emprego estável e a vida seguia sem maiores percalços até que tudo inesperadamente desandou, como se uma maldição sobre ela tivesse se abatido. Agora, sem trabalho e condições de arcar com as despesas, via-se obrigada a morar outra vez naquele apartamento: herança deixada pelos pais, já há cinco anos, que nunca fizera questão alguma de visitar.

Desde a briga que tivera com os pais, já há quinze anos, Kelly sequer tinha chegado perto dali outra vez.

Ergueu a cabeça e lentamente atravessou o curto corredor que levava até aquela sala fria e escura. A veneziana estava fechada, como era costume quando ainda morava ali, o que tornava a enorme janela praticamente inútil. Caminhou até ela e permitiu que a luz do sol entrasse, trazendo um pouco de vida àquele apartamento frio e que sempre pareceu sem vida.

Olhou ao redor, ao menos tudo parecia estar limpo, Ofélia tinha feito um excelente trabalho, e não era para menos, tinha recebido uma boa quantia para isso.

Com passos hesitantes Kelly se certificou de que o apartamento estava em ordem. Mesmo com um calor de trinta graus lá fora ele era estranhamente frio, da mesma forma como se lembrava, por isso o chamava de mausoléu.

A porta do quarto que era usado por seus pais provavelmente estava trancada, como tinha orientado à empregada. Não fez questão de verificar, sequer quis tocar na maçaneta, e preferiu ir até aquele que usaria, deixando ao lado da cama a mala onde carregava seus pertences.

– Logo isso tudo vai tá diferente... Bom, melhor ir no mercado antes que anoiteça, vou precisar comer né...

...

Sem a antiga mobília que lhe trazia angustiantes lembranças a aparência do apartamento tinha melhorado bastante, mas mesmo após algumas semanas aquele lugar a incomodava. Por quê? Kelly não sabia dizer, desde pequena se sentia assim naquele apartamento. Acreditava ser por causa da vida cercada pelas discussões e bebedeiras dos pais, mas eles já não estavam mais ali, então por que se sentia daquele jeito?

Talvez fosse pela estranha sensação de às vezes estar sendo observada ou até mesmo sentir a presença de alguém? Sim, não foram poucas as vezes em que, ao estar cozinhando, tinha a nítida impressão de ter alguém se aproximando por detrás dela ou então, enquanto via televisão, ter alguém a observando de algum canto da sala.

Seria o “mausoléu” assombrado? Ela ria quando pensava nesse tipo de coisa.

Kelly nunca acreditou em assombrações nem em nada assim. Para ela isso tudo era fruto da imaginação, da costumeira sensação de isolamento que aquele apartamento lhe trazia, ou simplesmente por estar nele, um lugar de que ela definitivamente não gostava.

Já o tinha colocado à venda, conseguiria um bom valor com ele e assim encontraria outro lugar para morar, mas enquanto isso não acontecia a única coisa que podia fazer era conviver com os fantasmas do passado e do presente, e não seria por muito tempo, ela poderia suportar.

...

O dia tinha sido longo, Kelly acabara de chegar de uma entrevista de emprego praticamente do outro lado da cidade e estava no banho. Se sentia animada, parecia ter se saído bem e contava com um breve retorno positivo, até ouvir um estrondo, como se uma porta batesse com força.

Aguçou os ouvidos e um frio lhe subiu pela espinha ao ouvir o som de passos do lado de fora. Fechou o chuveiro e ficou em silêncio. Eles continuaram. Lentos, arrastados, como se uma pessoa idosa caminhasse pelo apartamento.

– Ei! Quem tá aí? – ela gritou, sem obter nenhuma resposta, mas fazendo com que o barulho desaparecesse – Eu devo estar enlouquecendo, só pode... – resmungou se enrolando na toalha, mas o som então recomeçou e dessa vez parecia vir na direção do banheiro.

Kelly abriu o armadinho e, por mais patético que isso seja, pegou uma tesourinha de unha, a única arma que tinha à disposição para se defender de um possível invasor, e ficou em silêncio.

À medida em que o som lentamente se aproximava seus olhos esbugalhados esperavam que a porta se abrisse a qualquer instante, mas quando seu coração já estava a ponto de sair pela boca tudo o que pôde ouvir foi o silêncio. Um silêncio que, ao invés de lhe trazer alívio, a deixou ainda mais aterrorizada.

A pessoa estaria ali, do lado de fora, esperando por ela. O que poderia fazer?

Cautelosamente Kelly se aproximou da porta e encostou a orelha, ouvindo então uma pesada respiração. Tomada pelo pânico, com o corpo todo tremendo, se afastou um pouco – Vai embora filho da puta, ou vou te matar! – esbravejou.

Sem resposta alguma, nem um som sequer, apenas o silêncio entrecortado pelo gotejar do chuveiro às suas costas, o medo repentinamente se transformou em ira. “Não vou ficar aqui igual um coelho entocada esperando...” pensou levando a mão trêmula até a maçaneta e abrindo a porta de supetão pronta para o confronto.

Soltou um suspiro de alívio ao se deparar com o corredor vazio, mas seu coração disparou ainda mais ao ver que a porta do quarto dos pais, que sempre esteve trancada, estava agora entreaberta.

– Mas que porra é essa... – resmungou antes de, com a tesourinha em punho, lentamente caminhar até ela. Um forte cheiro de cigarro vinha do quarto e imediatamente ela se lembrou dos pais. Esse era o cheiro que impregnava o apartamento enquanto estavam vivos.

Sem explicação seus olhos marejaram e um nó lhe tomou conta da garganta, mas ao contrário da última vez, essa porta foi cautelosamente aberta.

Lentamente seus olhos percorreram a penumbra do cômodo e ela não encontrou nada além dos antigos móveis que eram de seus pais, os únicos que permaneciam no apartamento. Sua mente foi então bombardeada por lembranças que ela já tinha se esforçado para esquecer. Lembranças terríveis, tristes, degradantes, de coisas que a fizeram abandonar aquele lugar na primeira oportunidade que teve.

– Eu devia ter dado um fim nessa merda toda também... – balbuciou com a voz embargada antes de fechá-la – Mas quem abriu isso? Refletiu um pouco, olhou ao redor e não viu ninguém...

Já em seu quarto, sentada à beira da cama, pensava sobre tudo o que tinha acabado de acontecer, mas como explicar tudo aquilo?

Não, não tinha nenhuma outra explicação a não ser aquela que era a mais inacreditável: a de que o apartamento era assombrado. Mas por quem? Pelos seus pais? Por quê?

– Tudo o que eu queria era ter um pouco de paz, só isso... – mal se podia ouvir sua voz embargada pelo choro que insistia em conter.

Mesmo com o frio que assolava o apartamento Kelly ficou ali por vários minutos, enrolada apenas na toalha úmida, perturbada, tentando entender aquilo tudo.

– Talvez no quarto deles eu encontre alguma resposta. – concluiu antes de rapidamente se vestir. Voltou até o cômodo e quando pôs a mão na maçaneta percebeu que ela estava estranhamente quente. Para seu horror, ao girá-la, viu que a porta agora estava trancada, como sempre deveria ter estado.

Kelly pôs as mãos na boca, aterrorizada, correu até a sala e desesperadamente olhou ao redor como se procurasse alguém. Ao se dar conta de que realmente estava completamente sozinha levou as mãos à cabeça, em pânico... – Eu devo tá enlouquecendo ou tem alguém me sacaneando... – foi até a entrada e viu que a porta também estava trancada, ninguém podia ter entrado no apartamento – Eu tenho que sair daqui! – gritou, descontrolada, antes de correr até seu quarto decidida a arrumar as malas e ir embora.

Mas ela não colocaria seu plano em prática porque, assim que entrou, ao ler o que estava escrito na parede com o que parecia ser sangue, se pôs de joelhos e começou a chorar desesperadamente: “O apartamento 103 não é um lar de putas”.

Não saberia dizer por quanto tempo ficou ali, chorando, sendo consumida por dolorosos pensamentos que a atormentavam.

Então Kelly se levantou e enxugou o rosto.

Como em um estado de transe se maquiou, vestiu um lindo vestido vermelho e um sapato de salto antes de caminhar calmamente até a sala e ficar admirando, pela ampla janela, uma lua cheia que tentava vencer o nublado céu para se fazer visível.

O apartamento 103 poderia servir de mausoléu para qualquer outra pessoa, menos para ela, e morar no décimo andar finalmente serviria para alguma coisa.


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