O taxi deu a volta na pequena rotatória que marcava o centro
do condomínio e encontrou uma vaga para estacionar perto da entrada do prédio
2. As grossas gotas da chuva torrencial refletiam e multiplicavam o brilho dos
faróis e, apesar dele, mal dava para ver a entrada do saguão. Hamilton pagou ao
taxista e desembarcou. As botas protegiam seus pés da enxurrada e o sobretudo,
o corpo; mas mesmo assim ele entrou no prédio se sentindo ensopado, pois os
cabelos pingavam e seus óculos embaçaram. Enquanto aguardava o elevador
retornar ao térreo, ele tentou sem muito sucesso secar as lentes dos óculos na
barra da camisa. – “ Maldição!...” – pensou – “ Parece que o céu está desabando
com essa chuva!”
Foi ao pegar as chaves no bolso do sobretudo que ele notou o
que havia sobre o capacho. Um envelope vermelho e preto, sem nome de remetente
ou de destinatário. Dentro, um convite em papel espesso negro, com letras
prateadas rebuscadas e um símbolo estranho no canto direito, como se fosse uma
assinatura: duas serpentes entrelaçadas, uma mordendo a cauda da outra. Hamilton
lembrou-se que já havia visto aquela figura antes, só não lembrava onde.
O convite indicava a data do dia seguinte, um endereço nos
arredores da cidade e não trazia maiores detalhes nem nada que indicasse quem
enviou. Cansado como estava, Hamilton apenas jogou os papéis sobre a mesa, foi
tomar um banho e dormir. A chuva permanecia forte.
Após uma noite de sono profundo, porém nada reparador, onde
pesadelos com as serpentes do símbolo e uma estranha mulher de olhos verdes
penetrantes o importunaram, Hamilton acordou sentindo-se mais cansado que
antes. Felizmente a chuva passara e um belo sábado de sol e céu limpo o
aguardavam. Tomando uma xícara de café forte ele deu atenção novamente ao
estranho convite, então reparou que em letras menores na base havia um telefone
para confirmar a presença. Podia ser qualquer coisa: Um evento patrocinado por
alguma marca, uma festa exótica de algum conhecido, uma pegadinha de um
programa da TV... Hamilton só não pensou na possibilidade de ser uma armadilha.
Após o almoço decidiu ligar. Do outro lado da linha, uma voz sensual:
-Alô? Sr. Hamilton?
-Sim. Liguei por causa do convite. Quem enviou?
-Não estou autorizada a passar essa informação, Sr.
Hamilton. Posso apenas dizer que o evento será inesquecível e que sua presença
será muito importante. Posso confirmar sua vinda? Se concordar, um carro estará
lhe esperando precisamente às vinte horas em frente ao seu condomínio.
Hamilton pensou um pouco e ficou ainda mais curioso. O que
poderia ser tão especial?
-Sr. Hamilton? Preciso de sua confirmação. – perguntou a voz
sensual, com uma ponta de impaciência quase imperceptível.
-Desculpe... Pode confirmar. – respondeu Hamilton, ainda um
tanto indeciso.
-Excelente! Será uma noite especial para todos, Sr.
Hamilton.
O restante do sábado correu normalmente, embora a ansiedade
gerada pelo tal convite não deixasse Hamilton pensar em outra coisa. Após uma
breve pesquisa na internet, ele encontrou o símbolo do convite: seu nome era
Ouroboros e simbolizava a eternidade. “...Segundo o “Dictionnaire des symboles”
o ouroboros simboliza o ciclo da evolução voltando-se sobre si mesmo. O símbolo
contém as ideias de movimento, continuidade, autofecundação e, em consequência,
eterno retorno...” – leu em um site.
Exatamente às vinte horas o tal carro chegou. Hamilton
reconheceu o brasão do Ouroboros no discreto aplique na porta, próximo ao
retrovisor. A porta traseira foi aberta e Hamilton teve a primeira surpresa da
noite: A mulher que vira no seu sonho estava ali, com olhos verdes que pareciam
atravessá-lo, o corpo escultural num vestido justo preto e vermelho, o farto
cabelo solto caindo sobre os ombros nus.
- Prazer... Sou Valquíria. Entre Sr. Hamilton... Antes que
pergunte algo, sua curiosidade será satisfeita em breve. Até lá, peço que aguarde.
– Aquela então era a dona da voz sensual que lhe atendera ao telefone... Já
dentro do carro, com os vidros fechados, todo o som da rua desapareceu.
Valquíria exercia um inexplicável fascínio sobre Hamilton, que não ousou dizer
uma palavra durante o trajeto.
Cerca de 40 minutos depois entraram numa estradinha deserta
ladeada por árvores e muito mato. A única iluminação era a dos faróis do carro.
Após uns quinhentos ou seiscentos metros pararam na frente de um grande portão
de ferro, que se abriu para lhes dar passagem.
-Chegamos. – Disse a mulher, sorridente. - Seja bem vindo! Mi casa és su casa!
Tochas iluminavam o caminho até a casa, uma mansão em estilo
vitoriano, ainda mais impressionante com a iluminação do fogo. Valquíria desceu,
seguida por Hamilton. Dois seguranças enormes guarneciam a entrada. Ambos
usavam terno preto e máscaras de caveira extremamente realistas. E dentro novas
surpresas aguardavam Hamilton.
O pessoal lá presente se esmerou nas fantasias exóticas,
aquilo estava parecendo mais um episódio do Face Off! Hamilton não se lembrava
do convite mencionar uma festa a fantasia... Estava tão fascinado que não
percebeu quando Valquíria trancou a porta principal do salão.
Haviam muitas pessoas no amplo espaço. Servindo bebidas,
garotas com fantasias que lembravam a personagem Samara do filme “O Chamado”. Uma
delas lhe estendeu a bandeja oferecendo uma taça com um coquetel escuro de
cheiro agradável, frutado. Antes que pudesse perguntar o que era, a garota se
esgueirou de volta entre os convidados. Hamilton provou a bebida, cujo gosto
era adocicado. “Deve ser de frutas vermelhas..” – pensou, tomando um gole mais
generoso. Apesar de não ser fraco para o álcool, sua cabeça pareceu girar
imediatamente e a vista escureceu por um momento. Os estranhos convidados
olhavam para ele e sorriam... Um instante depois tudo apagou.
...
Quando voltou a si, viu o teto da casa envolto em brumas que
se dissipavam à medida que ele recobrava a consciência. Ouviu a voz de
Valquíria e percebeu que ela estava de pé ao lado dele.
- Meus caros! – Ela falou erguendo os braços numa saudação
efusiva – Alegrem-se, pois temos aqui um novo convidado para nossa festa!
Hamilton não entendeu de imediato o que ela dizia, mas os
presentes ergueram taças e responderam com entusiasmo. Ao tentar se erguer
percebeu que estava preso a correntes sobre uma espécie de mesa de pedra, que
não se lembrava de ter visto antes. As figuras formavam um círculo em torno
dele e comemoravam, riam e brindavam com taças repletas daquele licor
esquisito. Tentou gritar, mas a voz não saía.
Valquíria se debruçou sobre ele que, horrorizado, viu o belo
rosto da mulher se transformar numa máscara pálida emoldurando olhos injetados,
o sorriso foi substituído por um esgar que mostrava dentes pontiagudos e uma
língua enegrecida e áspera passou sobre seu rosto deixando-o enojado. Ela deu
uma gargalhada e ergueu um braço esquálido cuja mão ossuda portava uma faca.
Antes do golpe fatal, olhou para ele sorrindo e disse:
- Daqui a pouco você será um de nós, Hamilton. Saiba que este
festim não termina nunca. Estamos numa dimensão onde não existe a morte, apenas
a celebração eterna, alimentada pela captura de mortais como você para manter
nossa espécie com sua energia vital. É dela que é preparado o líquido que você
bebeu. A maioria não resiste e sucumbe, tendo seus corpos inúteis abandonados
no espaço entre as dimensões. Mas uns poucos, especiais como você, permanecem
vivos. Estes ficam aqui, fazendo parte dos convivas.
Com um golpe Valquíria corta a garganta de Hamilton. Ele
estremece, seus olhos se arregalam e as correntes que o prendiam se desvanecem.
Lentamente ele se ergue, com sangue minando da garganta recém cortada. Leva a
mão ao pescoço e observa seus dedos banhados em sangue fresco. Valquíria o toma
pela mão e leva para o salão, de onde nunca mais se sai até que precisem buscar
um novo convidado.
Biografia
Ronaldo Costa - Sempre fui fã de literatura fantástica e adoro ler… Daí, escrever meu primeiro livro foi um passo natural nessa evolução e agora, depois de longos anos de preparação, estou divulgando “Cross – A Ascensão de Sophia”.
Antes de me aventurar a escrever um romance desse gênero, fui autor de um blog sobre Gestão da Qualidade, o Qualiblog, onde publiquei artigos sobre o tema (alguns inclusive reproduzidos em revista especializada da área, a Banas Qualidade) e também produzi e-books voltados a esse público, que tiveram grande aceitação e ainda hoje são procurados no blog, que está atualmente sob a direção do meu amigo Rigoni.
Assim como na época em que eu estava à frente do Qualiblog, aqui também quero dividir esse espaço com leitores e interessados, pois a opinião de vocês é que guiará meus trabalhos futuros, na intenção de oferecer a vocês bons momentos de entretenimento com a leitura de novas estórias…
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