Talvez mais
aguardado que seus próprios aniversários ou até mesmo o Natal,
o Halloween seja o feriado preferido pela maioria das crianças. Se
fantasiar de seu personagem preferido e bater de porta em porta atrás de doces
grátis? Impossível não gostar. Sem dúvida era o feriado mais esperado por Anne,
Jason e o casal de gêmeos Alex e Jasmine. O quarteto tinha os mesmos 12 anos.
Suas mães eram amigas antes mesmo deles nascerem. Estudavam na mesma escola.
Moravam na mesma rua. Tudo isso fazia do grupo os melhores amigos inseparáveis.
- Vamos,
Jason! - Alex gritou da varanda pela terceira vez - Estamos perdendo os
melhores doces!
Anne estava
ocupada ajeitando os infinitos babados de tule de sua fantasia de fada.
Jasmine, sentada em um dos degraus da entrada se ocupava em recolocar a tiara
brilhante de sua fantasia de princesa enquanto seu irmão Alex, vestido como um
pirata, andava de um lado para outro da varanda da casa de Jason.
Quando a
porta enfim se abriu, Jason saiu animado e atraiu o olhar dos amigos.
- Você é um
mágico? - Anne perguntou, curiosa.
- Sou o
Drácula! - O garoto parecia verdadeiramente ofendido.
Alex puxou a
irmã pelo braço para que ficasse em pé e no caminho também arrastou Jason e
Anne para a calçada.
- Por mim
pode ser até o Elvis que eu não ligo, desde que a gente comece logo a caçada!
A impaciência
de Alex venceu e os quatro começaram sua jornada pelas ruas do bairro, assim
como dúzias de outras crianças que corriam e gritavam felizes pelas mesmas ruas
que eles, vestidas como super-heróis, monstros, personagens de desenho ou até
mesmo como objetos e comidas.
O quarteto
tinha um acordo posto em prática nos últimos três anos: Dividir por igual. O
acordo começou quando notaram que mesmo indo até as mesmas casas ao mesmo
tempo, as meninas recebiam porções maiores de doces e os meninos brigaram pela
injustiça. Assim ficou acordado que no fim de cada caçada o grupo faria uma
grande pilha de doces e repartiria em porções exatamente iguais.
O relógio do
parque marcava as nove e cinco quando as quatro crianças passaram rindo. A esta
hora a maioria das crianças menores já estava sob o toque de recolher e os mais
velhos em festas incontroláveis, tornando as ruas mais vazias. O parque em si
estava deserto, não fosse pelo quarteto que acabava de chegar. A região era
cerada por escolas e comércios, o que mantinha os caçadores de doces afastados.
- Por que
demorou tanto para sair essa noite? - Alex questionou.
- Meus pais
estavam me segurando. - Jason andava chutando uma tampa de garrafa. - Começaram
uma longa conversa sobre sermos velhos demais para correr por aí de fantasias.
- Achei que
tínhamos sido só nós. - Jasmine se juntava a conversa. - Anne?
- Comigo
também. - Confessou.
Andaram em
silêncio por poucos minutos até Alex chutar uma pinha com toda força.
- Pff! O que
os pais sabem? Não estamos velhos demais pra nos divertirmos. - Terminou sua
frase e correu na frente dos outros. - Quem chegar por último come um sapo
morto!
Jason saiu
correndo imediatamente, enquanto as meninas ainda tiveram tempo de se olhar e
dizer ao mesmo tempo: - Que nojo!
Logo haviam
sentado entre os brinquedos do parquinho e dividido suas conquistas açucaradas
daquele ano. Agora se ocupavam em comer a maior parte enquanto conversavam
sobre programas de tevê.
Todos olharam
em volta quando um som de metal rangendo os fez parar de rir. O gira-gira se
movia lentamente enquanto uma garota pequena dava impulso com pés descalços.
Ela usava um comprido vestido branco que poderia ser confundido com aquelas camisolas
antigas, e um felpudo urso de pelúcia estava sentado ao seu lado. O vento
jogava os longos cabelos pretos sobre o rosto da menina, mas, mesmo assim, sua
palidez quase absorvia o branco do vestido, a não ser pelo contorno dos olhos
que pareciam escuros de olheiras.
- Vocês
querem brincar?
Sua voz era
um sussurro que quase foi apagado pelo vento que soprou forte no mesmo
instante.
- Credo... -
Alex sussurrou com um arrepio.
- Ah, você
está sozinha aqui? - Anne se levantou e deu um passo para perto da menina que
se encolheu parando o movimento do brinquedo e fazendo Anne parar também. -
Tudo bem. Eu não vou te machucar. Onde estão seus pais?
A menina
pareceu pensar sobre isso antes de dar de ombros e pôr o brinquedo novamente em
movimento com o rangido insistente do metal enferrujado.
- Qual seu
nome? - Jasmine tentou sorrir, mas, no fundo, também estava um pouco arrepiada
com a aparência da menina. - O meu é Jasmine, essa é minha amiga Anne, meu
amigo Jason e meu irmão Alex.
- Emily. - Um
sussurro. Apontou para o urso ao lado. - Este é Teddy. Meu amigo.
- Cara, é a
melhor maquiagem que eu já vi. - Jason falou baixo cutucando Alex. - Chega a
assustar mesmo.
Anne se
aproximou mais e desta vez a menina não se encolheu.
- Um prazer
conhecer vocês dois. Vocês estão perdidos, Emily?
A pequena
balançou a cabeça confirmando antes de virar os olhos fundos na direção dos
quatro que se encolheram com a surpresa.
- Vocês
querem brincar?
Quando nenhum
deles respondeu, Emily puxou o urso de pelúcia mais para perto de si e voltou a
falar.
- Teddy
deixou bastante espaço para vocês. Vamos brincar.
Logo começou
a cantarolar uma música e pareceu ignorar por completo os outros quatro que se
reuniram ainda observando a pequena girar e girar.
- Galera, não
podemos deixar essa menina sozinha aqui. Está ficando tarde e frio, e nem
sapatos ela está usando. - Jason concluiu.
- Ela me dá
arrepios... - Alex esfregou os próprios braços.
- Jason tem
razão. - Jasmine concordou.
- Vocês
querem brincar? - Emily, que no segundo anterior estava rodando no brinquedo,
agora estava parada a centímetros do grupo, abraçando o urso de pelúcia e
olhando para os quatro com uma expressão ao mesmo tempo inocente e apavorante.
Atrás dela o brinquedo ainda girou alguns centímetros antes de parar.
Com o susto
os quatro deram dois ou três passos para longe de Emily até que Jasmine decidiu
voltar para perto, se abaixando para ficar na mesma altura.
- Vamos te
levar até sua casa. Sabe onde fica?
Emily virou o
urso de costas e o esticou para Jasmine que o pegou para olhar mais de perto.
Uma etiqueta costurada nas costas do animal de pelúcia vinha
escrito: "Emily H. – Ravenswood, Nº 137"
- Não conheço
essa rua, mas posso achar. - Devolveu o urso para Emily que o abraçou com força
e tirou um mapa dobrado de sua bolsa de princesa, o esticando no chão. - Luz,
por favor.
Alex tirou a
lanterna do bolso e iluminou o máximo possível para a irmã checar o endereço.
Jasmine correu os olhos pelo mapa que englobava toda a cidade e vários minutos
depois apontou para um pedaço específico.
- Aqui! -
Sorriu ao encontrar o endereço, mas logo ficou séria. - É meio longe, mas acho
que podemos andar até lá.
- Meio longe?
Vamos levar umas duas horas para ir e voltar andando desse lugar. - Jason puxou
os cabelos para trás. - Meus pais vão me matar.
O grupo
debateu por vários minutos até que decidiram levar Emily até o endereço
costurado em seu urso. Imaginaram que se fossem eles, com quatro ou cinco anos,
perdidos em uma noite fria, gostariam que alguém ajudasse a voltarem para casa.
Anne se
ofereceu para dar a mão para a pequena, e depois Jason ofereceu sua capa de
vampiro para protegê-la do frio, mas em ambas as situações Emily negou e disse
que estava bem.
- Você notou
que desde que a encontramos ela não mudou a expressão? - Alex cochichava para o
amigo. - Quero dizer, que tipo de criança perdida não chora ou faz aquela cara
de filhote na chuva?
- Ela se
parece com uma daquelas bonecas de porcelana que eu vi na casa da minha avó. -
Jason completou. - Mas é só uma fantasia de halloween.
As meninas
andavam uma de cada lado da pequena Emily, vez ou outra tentando puxar assunto,
mas a menina se mantinha em silêncio, olhando sempre para frente, segurando
Teddy pelo bracinho, fazendo o urso balançar para frente e para trás.
Andaram pelo
que pareceu várias horas, as vezes parando para checar a direção no mapa de
Jasmine e então continuando a caminhar. A noite ficava mais fria, o vento mais
forte e as ruas mais desertas.
- Certo. -
Jasmine parou com o mapa na mão. - A rua é esta. Precisamos encontrar o número
137.
- Cara, não
sinto meus pés. - Jason sentou na calçada. - Parece que andamos por dias.
- Foram só
cinquenta minutos. - Anne o levantou. - Vamos, falta pouco.
- Nunca
estive nessa parte da cidade antes. - Alex olhava em volta pela rua escura. - É
meio sinistra.
Jasmine
dobrou o mapa e o guardou na bolsa, parando para olhar para a criança que não
estava mais ali.
- Hey! Cadê a
Emily?
- Ah, ótimo!
Perdemos a menina perdida!
- Emily!
Emily! - Anne chamava e só parou quando Alex apontou mais a diante na rua.
- Aquele
fantasmagórico vulto branco sinistro só pode ser ela.
Os quatro
correram até alcançar Emily que andava lentamente pelo meio da rua. Quando Alex
a segurou pela mão e puxou para calçada, Emily se soltou com força, encolhendo
em um canto e abraçando o urso enquanto Alex parecia ter visto um zumbi.
- Ela está
gelada. Tão gelada quanto um bloco de gelo no inverno.
- É o vento
frio, e ela está descalça. - Jasmine se apressou em acalmar o irmão, ou talvez
a si mesma. - Vamos logo deixá-la em casa. Venha, Emily.
Seguiram a
rua observando os números das casas até parar em frente a uma grande casa
antiga com o número 137 pintado no muro externo.
- Emily,
certeza que essa é sua casa? - Anne forçava o sorriso. - Talvez você tenha se
mudado e não trocou a etiqueta do seu urso.
A criança
olhou fundo nos olhos de Anne a ponto de fazer a garota se arrepiar, então
empurrou o portão de ferro que se abriu com um rangido e correu para dentro do
quintal sem dizer nada.
- Ninguém
pode morar nesse lugar. - Jasmine esfregava os próprios braços com o vento
frio. - Está abandonado.
- Talvez seja
a melhor decoração de halloween de todos os tempos.
- Temos que
achar essa menina. Ela pode se machucar aí dentro. - Jason empurrou mais o
portão e os quatro entraram.
Um jardim
crescido e cheio de ervas daninhas encobria um caminho de pedra até a entrada.
Cinco degraus de mármore sujo subiam até uma varanda deteriorada e uma porta de
madeira desgastada que agora estava aberta.
- Ah, cara!
Não me diga que ela entrou na casa! - Alex tentava esconder o medo.
- Emily? -
Anne gritou pelo vão da porta. Sem resposta.
Jasmine, Alex
e Anne gritaram de susto quando algo se quebrou atrás deles. Se viraram para
ver Jason que andara de costas até bater em um vaso de barro que agora estava
despedaçado no chão. "Medo" era o mínimo que se podia dizer da
expressão do garoto.
- O que foi?
- Anne estava prestes a começar a chorar.
Jason ergueu
a mão trêmula e apontou para a caixa de correios presa à parede ao lado da
porta. Sob teias de aranha e poeira vinha entalhado o nome da família dona da
casa.
- Holbrook? -
Alex leu. - Que droga isso tem de mais?
- Essa é a
casa Holbrook? - Anne se afastou da porta.
- O que vocês
estão dizendo, afinal? - Jasmine questionou.
Jason tirou
os olhos arregalados da caixa de correio e olhou para os amigos.
- Todos
conhecem a história. Antigamente uma senhora morava com três filhos enquanto o
marido estava na guerra. Um dia ela recebeu um telegrama de que seu marido
havia morrido em batalha. - Jason parou.
- Nesse dia a
mulher enlouqueceu. - Anne seguiu contando. - Com uma faca de carne ela matou
os próprios filhos. Por causa dos gritos das crianças os vizinhos chamaram a
polícia.
- Quando os
policiais entraram na casa, havia sangue para todos os lados e a senhora
Holbrook estava na cozinha, cantarolando e cortando algo como se estivesse
preparando o jantar. - Jason respirou fundo e continuou. - Assim que os
policiais chegaram mais perto viram que ela estava cortando pedaços dos
próprios filhos em cima da mesa.
- Os
policiais mandaram ela se afastar e disseram que ela estava presa, mas assim
que ela se virou para eles...
- O que
aconteceu? - Jasmine perguntou, olhando para Anne.
- Ela estava
sorrindo. Coberta de sangue dos filhos, e sorrindo. - Anne disse. – Então ela
se matou, ali mesmo, passando a faca no próprio pescoço.
Os quatro
ficaram em silêncio, absorvendo a história e deixando o medo estampado em seus
rostos.
- Temos que
achar essa menina. - Alex se fazia de valente e rumava para a porta que
balançava com o vento.
- Eu não vou
entrar nessa casa! - Jasmine protestou.
- Certo.
Tenho certeza que Jason virá comigo. Ele não é uma menina medrosa. - Alex deu
as costas. - Vocês duas podem ficar aí. Sozinhas.
- É melhor
irmos todos juntos. - Anne se agarrou ao braço de Jasmine e seguiu os meninos
de perto.
O interior da
casa estava escuro, mas os quatro logo pegaram as lanternas e começaram a
apontar para todos os lados. Poeira cobria tudo. Móveis sob lençóis, um piano
velho no canto, castiçais sobre a lareira. A típica casa de filme de terror. E
nem sinal de Emily.
Um som pesado
chamou a atenção dos quatro que viraram suas lanternas para o final do
corredor.
- Vamos. -
Alex sussurrou puxando a irmã pela mão, mas Jasmine resistia.
- Não! Eu não
vou entrar na cozinha!
- Emily pode
estar lá. - Anne mantinha a voz baixa, ficando mais perto de Jason.
De novo a
pancada forte que fez o grupo prender a respiração.
Chegaram até
a cozinha e não havia nem sinal da pequena menina, apenas uma janela que batia
vez ou outra com a força do vento.
- Foi aqui. -
Jason olhava para a mesa de madeira podre no centro do cômodo. - Foi nessa mesa
que a senhora Holbrook despedaçou os filhos.
- Vamos sair
daqui! - Anne choramingou.
Passos
pesados de alguém correndo no andar de cima os fez congelar e virar suas
lanternas para o teto.
- Deve ser
essa pirralha pregando uma peça na gente. - Alex apontou a luz para o corredor
de volta para a sala. - Vamos.
Jason parou
na sala e o grupo fez uma roda apertada.
- Tinha uma
escada na cozinha. Se todos subirmos ela pode descer correndo por ali e
continuar fugindo da gente.
- Qual o seu
plano? - Jasmine parecia irônica. - Nos separar, Scooby-Doo?
Jason fez
cara feia para a menina, mas continuou a falar.
- É a forma
mais rápida de achar a Emily e todos sairmos dessa casa. - Apontou com a luz
pelas direções da casa. - Alex e Jasmine, olhem lá em cima. Anne e eu ficaremos
aqui em baixo, caso ela tente correr.
Assim
fizeram.
Jasmine se
agarrava ao braço do irmão como se sua vida dependesse disso e Alex subia com
cautela, ciente da madeira do assoalho rangendo pesada conforme eles andavam.
O andar de
cima estava ainda mais escuro. Suas lanternas mostravam apenas um longo
corredor sujo com quatro portas fechadas. Alex apoiou a mão na maçaneta da
primeira porta, olhou para a irmã e contou até três aos sussurros antes de
abrir a porta com força.
O vento
provocado pela porta levantou toda a poeira e encobriu a visão dos gêmeos por
um instante, antes de revelar um banheiro vazio, a não ser por dois ratos
mortos na banheira.
Seguiram pelo
corredor e abriram a segunda porta, com mais calma. Um quarto. A julgar pela
mobília e carrinhos de madeira espalhados pelo chão, era o quarto de dois
meninos, mas além da sujeira do tempo o quarto estava deserto.
Passaram pela
terceira porta, um quarto com uma cama de casal que deveria pertencer a senhora
Holbrook, e nada de Emily. Sobrava então a última porta.
Alex já
estava com a mão na maçaneta quando Jasmine apertou seu braço com força e o fez
se virar.
- Você fechou
a porta do banheiro depois que estivemos lá?
- Não. - Alex
direcionou o olhar pelo corredor com a lanterna até a porta fechada do
banheiro. Sentiu os cabelos de sua nuca arrepiarem.
- Se tivesse
sido o vento ou a Emily nós teríamos ouvido o barulho dela fechando, não é? -
Jasmine lacrimejava.
- Ela só pode
estar nessa porta. Além daqui só tem a escada para o andar de baixo e os outros
teriam avisado se ela tivesse descido. - Alex girou a maçaneta. - Vamos sair
logo daqui com essa pirralha.
O último
quarto era de menina. Cheio de bonecas de pano e bichos de pelúcia. Alex e
Jasmine entraram no quarto, vasculhando cada canto atrás da pequena Emily. Não
havia ninguém sob a cama ou dentro do armário. Nada além de bonecas no baú de
brinquedos. Apenas sujeira atrás das cortinas.
Os gêmeos
estavam tão ocupados vasculhando o quarto que não notaram o vulto em pé
bloqueando a porta. Não o vulto de uma criança de cinco anos, mas um vulto
alto, magro e com um reluzente objeto em uma das mãos.
No andar de
baixo Anne remexia nos lençóis sobre os móveis, se perguntando se Emily estaria
escondida por ali. Jason alternava a lanterna entre a escada da sala e o
corredor da cozinha, prestando atenção caso a menina passasse correndo.
- Vocês
querem brincar?
A voz veio do
centro da sala, bem próxima a Jason que no susto cambaleou para trás se
chocando com a lareira. Para tentar evitar a queda, Jason brandiu as mãos no ar
e se agarrou a um lençol empoeirado que caiu sobre sua cabeça.
- Droga! De
onde essa menina veio? - Ele lutou para tirar o lençol da cabeça, mas a menina
não estava mais na sala. - Emily!
Só então se
deu conta do olhar apavorado de Anne e das lágrimas silenciosas em seu rosto.
Seus olhos focavam um ponto ao alto de onde ele próprio estava e teve que se
levantar para acompanhar o olhar da amiga.
O lençol que
ele havia puxado estivera até então servindo de cobertura para um enorme quadro
sobre a lareira. O tipo de quadro familiar comum antigamente. Na imagem um
homem ao fundo estava em pé, imponente em um uniforme militar. Sentada a sua
frente, uma mulher jovem e elegante com um sorriso enigmático. De cada lado
dela havia um garoto com expressão de puro tédio. Mas o que chamou a atenção
foi a quinta pessoa na pintura. Sentada aos pés da senhora, com um bonito
vestido branco e abraçada a um urso de pelúcia estava uma menina de cinco anos
de longos cabelos pretos.
- Emily... -
Um flash da etiqueta do urso de pelúcia invadiu a mente de
Anne. "Emily H." - ... Holbrook
Um insistente
som começou na cozinha. Batidas baixas e compassadas, o tipo de som que ouvimos
quando nossas mães estão cortando coisas para o jantar. Jason e Anne apontaram
suas lanternas para a cozinha vazia e escura, mas o som continuava.
- Vocês
querem brincar?
Ambos se
viraram para encara Emily, mas Anne gritou. Ela estava ali, com seu vestido
branco ensopado de sangue que escorreu de seu rosto através de um profundo
buraco negro onde costumava estar seu olho direito.
Pela primeira
vez ela sorria. Um sorriso doentio e torto que só servia para enfatizar o
buraco em seu rosto, causado pela faca que a mãe lhe enterrara no crânio
através do olho, cinquenta anos antes.
Barrados pela
menina morta que esticava suas mãozinhas cheia de sangue para os dois, Jason e
Anne correram para o único lugar que podiam. A cozinha. Pararam na entrada do
cômodo e olharam pelo corredor esperando ver Emily os seguindo, mas a menina
havia desaparecido.
Um cantarolar
começou atrás deles e viraram a lanterna com rapidez. Um vulto alto e magro
estava de costas para os dois. Usava um vestido longo e escuro sob um avental
de cozinha. O cabelo escuro estava bagunçado e não deixava dúvidas de que era
uma mulher. Ela cantarolava e batia a faca sob a mesa, com seu corpo encobrindo
o que quer que fosse que estivesse cortando.
A mulher
parecia ignorar a presença do dois abaixados no canto e seguia cantando e
cortando. Quando algo caiu da mesa com um baque surdo no chão, Anne moveu a
lanterna para ver o pedaço de carne no chão. Gritou com toda a força ao notar
os dedos de belas unhas pintadas de rosa brilhante na mão decepada que antes
estivera ligada ao braço de Jasmine.
Com o grito
de Anne a mulher parecia enfim tê-los notado e a faca parou. Ela se virou
rápido frente ao feixe de luz da lanterna de Jason, expondo o sorriso cruel e o
comprido corte aberto em sua garganta por onde escorria sangue, as vezes
espirrando quando ela insistia em cantarolar.
Quando a
senhora Holbrook se moveu, Jason e Anne puderam ter uma visão melhor da mesa e
dos vários pedaços que sobraram de seus melhores amigos.
Jason
chorava, mas tentou se manter firme. Agarrou a mão de Anne e a puxou para longe
da cozinha, correndo em direção a saída.
- Jason! - A
voz de Anne veio da cozinha, acompanhada por um grito.
Só então o
garoto notou que a mão que segurava, já na sala, estava fria. Fria demais. Soltou
rapidamente e virou a luz de sua lanterna para se deparar com um garoto de mais
ou menos a mesma idade que ele, com a boca costurada de forma grosseira e sem
um bom pedaço do pescoço. O mesmo garoto emburrado da pintura logo atrás deles.
O segundo filho da família Holbrook.
Antes que
pudesse reagir de alguma forma, pesadas mãos sem dedos caíram sobre seus
ombros, o empurrando para dentro. Jason olhou sobre o ombro para um garoto um
pouco mais velho, de olhos arrancados e as laterais da boca cortadas fundo em
um macabro sorriso eterno.
Os dois
garotos mortos empurraram Jason de volta até a cozinha onde Anne já não podia
mais gritar depois que uma longa faca fora enterrada por um dos lados de seu
pescoço até sair pelo outro.
Os gritos de
Jason foram a última coisa a ser ouvida na mansão Holbrook naquela noite.
Dois anos depois...
Um grupo de
adolescente de cerca de quinze anos corria pela cidade atirando rolos de papel
higiênico sobre as casas, rindo, gritando e dividindo entre si uma garrafa de
bebida alcoólica rouba dos pais de um deles.
Sentaram
sobre o muro baixo do parque ainda rindo e se empurrando, falando alto e
comemorando o halloween. Um deles se assustou quando o vento jogou contra
seu rosto um pedaço de papel velho.
- Que
porcaria é essa? - Os outros riam de seu susto enquanto o jovem olhava o papel.
- É um
daqueles cartazes de pessoas desaparecidas. - Uma das garotas olhava de perto.
- Outro daquelas quatro crianças que sumiram há dois anos.
- Olha, se
não acharam eles até hoje, pode crer que nunca mais vão achar. - Concluía um
terceiro virando um grande gole de bebida direto da garrafa.
O grupo deu
de ombros e o garoto amassou o cartaz jogando a bolinha de papel no cesto de
lixo. A bolinha deu duas voltas no aro e caiu para fora, dando início a uma
onda de risadas e provocações sobre o garoto ser um péssimo jogador.
Pararam de
rir quando um rangido metálico chamou a atenção de todos. Se viraram para o
parquinho logo atrás onde o gira-gira se movia lentamente enquanto uma garota
pequena dava impulso com pés descalços. Ela usava um comprido vestido branco
que poderia ser confundido com aquelas camisolas antigas, e um felpudo urso de
pelúcia estava sentado ao seu lado. O vento jogava os longos cabelos pretos
sobre o rosto da menina, mas, mesmo assim, sua palidez quase absorvia o branco
do vestido, a não ser pelo contorno dos olhos que pareciam escuros de olheiras...
- Vocês
querem brincar?
Biografia
Silvia Vieira Fragoso - Nascida em
São Paulo – Capital em 1991, teve sua primeira publicação impressa, o conto
“Esquecidos” na antologia “S.O.S – A Maldição do Titanic”, em 2012. Participou
de diversas antologias desde então, tendo sido inclusive a organizadora da
antologia “Vírus Z – Apocalipse Zumbi” em 2014. Desde então vem trabalhando em
projetos solo, sem deixar de lado suas aparições em antologias. Também assina
suas obras sob o pseudônimo “Sisa Delamari”. Mais sobre a autora em: http://sisafragoso.wix.com/escritora.
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