Dez
e quarenta e cinco da noite.
Como
que cumprindo um ritual sagrado, o celular toca, e as amigas iniciam mais um
bate-papo, com o mesmo ímpeto de quem discute o futuro da raça humana.
—
Ai, então... não sei se eu vou. Você viu o que a Tá falou pra Lê? Que o Ju é
mais gatinho que o Má. Ai, eu não acho! Você também não? Ai, sua cachorra!
Kkkkkkk. E aquela gordinha que entrou na nossa classe, hein? Acho que a gente
tem que dar um susto nela, o que você acha? Kkkkkkkkk
Após
30 minutos, a animada conversa segue em ritmo frenético, tendo como combustível
os hormônios da adolescência e a crueldade inerente às jovens bonitas.
—
... meu, acho o Má muito fofo! Vou jogar um charminho nele amanhã, de
preferência quando o Pê estiver por perto kkkkkkkk. O Pê... aquele da outra sala, que é todo
apaixonadinho por mim, escreveu bilhetinho e tudo mais! Kkkkkkkk. Isso! Ah, e
depois a gente prega uma peça na gordinha! Quem sabe o medo não faz ela emagrecer
um pouco?! No final a gente vai acabar é ajudando a coitada! Kkkkkkkk
Os
assuntos, risadas, confissões e desabafos ainda se repetem por outros 20
minutos, até que o pai da amiga, em surto repentino de autoridade, resolve
acabar com a conversa.
—
... ai amiga, então tá, amanhã a gente conversa mais. Beijão!
Após
desligar o telefone, a bela jovem perde-se em pensamentos: “aposto que essa
galinha vai dar em cima do Má amanhã! Que falsa, odeio essa menina! Mas fazer o
que, né? O mundo é assim mesmo e... ei, o que é isso?”. Um envelope jogado por
baixo da porta chama-lhe a atenção. Ao abrir, percebe com estranheza que se
trata de uma carta, cujo remetente é sua avó. “Ora, nós moramos na mesma casa,
ela dorme no quarto aqui do lado... por que esse negócio de carta? Será que a
velha está ficando gagá? kkkkk” – pensa a garota enquanto começa a ler, deitada
na cama, sob a pálida luz de um abajur cor de rosa.
“Querida
neta,
Provavelmente
você esteja estranhando essa carta, afinal, estamos fisicamente tão próximas,
não é mesmo? Talvez tenha até pensando que a senilidade acabou tomando conta da
minha mente já tão desgastada pelo tempo, mas lhe asseguro – posso não ter a
mesma saúde, mas estou lúcida como sempre. E preocupada com você como nunca. E
tal preocupação, aliada ao grande amor que sinto por ti, motivaram-me a
escrever, com a certeza de que esse seria o único meio de conseguir sua atenção
por alguns instantes. Esse, inclusive, é um dos pontos que gostaria de tratar –
sua falta de atenção para com aqueles que te amam.
Veja,
eu já fui jovem (sei que pode ser difícil acreditar nisso, vendo meus ralos
cabelos brancos e esse rosto sulcado pelo tempo, mas é verdade) e sei que nessa
sua idade estamos com a cabeça em outro lugar, que a família vira nossa última
prioridade. Já era assim na minha época, mas agora vejo que as coisas estão passando
dos limites. Entenda, minha intenção não é lhe dar sermão, mas abrir seus
olhos, fazer uma crítica construtiva para que você tente refletir sobre
atitudes das quais talvez venha a se arrepender no futuro. Por exemplo, você se
lembra de quando foi a última vez em que conversamos? A última vez em que nos
contou sobre seu dia, a última vez em que sequer jantou à mesa comigo e com
seus pais? Nem eu, querida. Nem eu. Faz bastante tempo que só te vejo pegar um
prato com pouquíssima comida, subir correndo as escadas e trancar-se no quarto.
Por Deus que já ouvi você vomitando no banheiro várias vezes depois de comer,
decerto acometida por essa obsessão coletiva de magreza. Seus pais não
percebem, ou fingem não perceber. Mas eu percebo. E percebo também que há muito
você só nos responde onomatopeias lacônicas ‘ahãn’, ‘hun-hun’, ‘tsc-tsc’,
enquanto digita esses balõezinhos no celular. Se eu entendesse alguma coisa
desses aparelhos, já teria comprado um telefone igual o seu, pelo menos assim,
com os balõezinhos, acho que conseguiria conversar com a minha neta. Mas como
não entendo bulhufas (palavra do meu tempo) dessa tal tecnologia, computadores
e outras geringonças (acho que é outra palavra do meu tempo), acabei escrevendo
uma cartinha à moda antiga mesmo.
Mas
onde quero chegar com isso? Só quero que você reflita. A beleza não pode custar
sua saúde. E o tempo passa, os amigos se vão, a família fica. Só que não para
sempre. Nada é para sempre. Não existe bem que sempre dure, nem mal que nunca
se acabe. Eu sei que nessa sua idade a gente não acredita muito nisso, mas eu
garanto – as pessoas morrem. Inclusive, não é minha intenção preocupá-la, mas
venho sentindo-me tão estranha ultimamente, acometida por calafrios, terrores
noturnos e lapsos de memória. Não sei quanto ainda vou durar. Ninguém sabe.
Talvez por isso tenha sentido tanta urgência em escrever-lhe. E quero alertá-la:
seguindo esse curso de atitude que você tem tomado, sempre distante da família,
é certo que sentirá remorso e amargura caso perca alguém e se dê conta de que
não pode mais voltar o tempo, para conversar e conviver mais intensamente com
aquela pessoa especial, que, enquanto estava viva, você preferia abster-se do
contato.
E
também tem outra coisa, querida.
Não
quero que pense que sou enxerida, que fico vigiando ou controlando sua vida,
mas meus ouvidos não estão completamente surdos, e as paredes de nossa casa não
são tão grossas. E principalmente, além disso, quase sempre você se empolga e
acaba por exagerar no tom de voz empregado nos telefonemas com suas amigas, e
quase é possível escutar do outro lado da rua as coisas que vocês falam. E a
maior parte da minha já relatada preocupação se dá pela constatação do tipo de
pessoa, pelo tipo de caráter, que vejo florescer em seu âmago. A beleza dá
poder às mulheres e indubitavelmente você foi abençoada com uma formosura
arrebatadora, que decerto enche os corações das outras moças com inveja e os corações
dos rapazes com desejo. Se não tomarmos cuidado, o poder, de qualquer natureza,
pode acabar por nos corromper, e, infelizmente, vejo que você está caindo cada
vez mais nessa armadilha. A beleza é passageira, minha neta. Já nossos atos,
são definitivos. Ser popular na escola, ser atraente e carismática não lhe dá o
direito de humilhar as pessoas, partir propositalmente o coração dos garotos,
pregar peças maldosas em meninas cujo único pecado foi não ter a sorte de
nascer com um rosto lindo como o seu. Tudo nessa vida tem um preço, minha jovem.
E às vezes a vida cobra caro. Vou contar-lhe uma história, talvez você pense
que é apenas para te assustar e não a tome com a seriedade devida, mas de todo
coração eu te aconselho – acredite na sua avó. Isso que vou relatar, por mais
macabro e inverossímil que possa parecer, aconteceu de verdade e eu acompanhei mais
de perto do que gostaria de ter acompanhado, nos idos tempos de minha
juventude. Guardei essa história em segredo por muito tempo e quando terminares
de ler, acreditando ou não, será a única pessoa viva a ter conhecimento de
fatos tão bizarros.
No
colégio onde estudei, como em todos os outros, em todas as épocas, havia as
meninas populares e as não tão populares assim. No primeiro grupo,
destacavam-se três amigas aparentemente inseparáveis. Dificilmente alguém
arriscaria dizer qual era a mais bela entre as três, cada uma irradiava um
brilho único. Quando estavam juntas (e quase sempre estavam), a luz emanada
daquele trio parecia ofuscar todo o universo. Bem, o universo talvez seja
exagero, mas as outras meninas da escola com certeza ofuscava, pois os olhos
dos moços não conseguiam se ocupar de outra visão quando aquelas três estavam
por perto. E de tanto receber mimos, paqueras e paparicos, tornaram-se cada vez
mais arrogantes e, com o passar do tempo foram ficando um tanto... malignas. Santas
na frente de professores, pais e diretores. Víboras que tramavam diabruras
quando estavam à sombra dos olhares adultos, protegidas por braços fortes de
brutamontes a quem ofereciam migalhas de carinho.
Começaram
utilizando seu irresistível poder de sedução para instigar os namorados das
outras meninas à infidelidade, propositalmente em lugares e horários em que a
moça traída poderia flagrar a cena. Elas saboreavam e deleitavam-se com a
decepção alheia. Depois, passaram a instigar os meninos mais tímidos e retraídos
a se apaixonarem, enchendo-lhes de esperança e palavras doces, provocando-os ao
limite, para então voltar a lhes dispensar o completo, costumeiro e irrevogável
desprezo. Sentiam-se deusas ao dilacerar aqueles pobres corações. Assim fizeram
por muito tempo, até matricular-se na escola uma menina baixinha e gorda, muito
gorda, com cabelos compridos e grossos, sobrancelhas espessas e muitos pelos
que formavam um bigode quase masculino acima de sua boca de lábios finos. Assim
que a viram, os outros alunos ficaram com pena das peças que certamente as três
belas amigas infringiriam à novata. Alguns encararam com certo alívio, pois
agora, com aquela menina tão grotesca por perto, deixariam de ser o alvo das
piadas e velhacarias.
Mas
para surpresa geral, elas não fizeram nada.
Com
o passar dos dias, talvez indignados pela “sorte” daquela moça tão quieta e
feia, talvez pelos anos de humilhação e deboches que cada um naquela escola acumulava
no peito, ou talvez simplesmente porque a maldade seja inerente à condição
humana, precisando apenas de alguém mais fraco por perto para que possa se
manifestar, os menos afortunados começaram a escarnecer a garota nova. Em
alusão à vasta quantidade de pelos, apelidaram-na de “ursinha” e a faziam
chegar às lágrimas todos os dias com as troças. Qual não foi o espanto, quando as
três belas e poderosas amigas intercederam em defesa da novata. Certo dia, após
observarem a menina isolar-se em um canto do pátio, depois de ser
ridicularizada pelos colegas de classe, o trio se aproximou, aparentemente com
a intenção de consolá-la:
—
Ei, não fica assim não – disse uma delas.
—
É, não liga para esses idiotas, conversa um pouco com a gente, ursinha. É assim
que te chamam, né? – a outra completou.
—
É, mas eu não gosto desse apelido – a garota respondeu, soluçando.
—
Ai, desculpa, eu não sabia. Olha só... o que você acha de entrar para a nossa irmandade? Garanto que ninguém mexeria
com você nunca mais.
—
Isso seria bom – a menina gorda sorriu, com o semblante se enchendo de
esperança. – Mas por que vocês me aceitariam? Isso é algum tipo de brincadeira?
– Logo a esperança desvaneceu, pois, como diz o velho ditado: “cachorro picado
por cobra, tem medo de linguiça”.
—
Não, claro que não. É que ao contrário do que você pode ter ouvido por aí, a
gente é bem legal. E gostamos de você assim que te vimos, não é mesmo, meninas?
E então, o que você me diz? Aceita fazer parte do nosso grupo? – disse a moça
de olhos azuis, enquanto acariciava os grossos fios de cabelo da novata.
—
Eu... bom... eu quero sim! – respondeu a gordinha, ainda com lágrimas nos
olhos, mas, dessa vez, mostrando um largo e surpreendentemente belo sorriso.
Pela primeira vez na vida, sentia-se querida por colegas de escola, e isso lhe
fez bem.
—
Maravilha! Sabia que você aceitaria! Agora você vai andar com a gente, e vamos
pregar umas peças naqueles seus colegas de classe, o que acha? E, no sábado,
teremos nossa primeira festa e também o seu ritual
de iniciação...
—
Ritual de iniciação? – o semblante voltara a ficar desconfiado.
—
É... sabe, quem entra aqui no nosso grupo tem que passar por um ritualzinho, só pra testar a coragem.
Mas você vai se sair bem, tenho certeza. Ei, mas que olharzinho é esse? Pode
confiar na gente. E aí, tudo bem? Topa?
Em
seu coração, algo dizia que aquilo era um embuste, mas a ânsia de ser aceita em
um grupo e também o desejo de ter poder e se vingar daqueles que a humilhavam
falou mais alto. Ela topou. Durante a semana, o trio tornou-se quarteto, e a
beleza das três parecia destacar-se ainda mais com aquela moça tão estranha por
perto. Conversavam como velhas amigas, caçoavam de seus desafetos, fumavam,
bebiam e instigavam a nova integrante da confraria a fazer o mesmo. Apesar de
ter muita mágoa guardada, a menina não apreciou muito as vinganças contra
aqueles que há poucos dias a destratavam. A maldade a incomodava. E também o
cigarro, a bebida e as conversas fúteis logo a incomodaram. Na sexta-feira,
antes de ir embora, ouviu de suas novas colegas:
—
Amanhã, hein?! Não esquece. Dez da noite, pulamos o muro, realizamos nosso
ritual e você entra oficialmente para o grupo. Depois os meninos trazem
cerveja, braços fortes e aquelas boquinhas gostosas pra gente beijar. Daí é
festa a madrugada inteira!
Pensou
em desistir da ideia de participar daquele grupo das meninas populares, mas
sentia medo da reação que elas poderiam ter caso fossem contrariadas. Tinha
mais medo disso do que do tal ritual de iniciação. Outrossim, não queria voltar
à rotina de humilhações, então, no Sábado, depois de muito pensar e hesitar, acabou
inventando uma desculpa em casa e foi até a escola, onde as três a aguardavam,
ansiosas. Pularam o muro da quadra e, guiadas pelas luzes de pequenas
lanternas, desceram rapidamente as escadas que davam no refeitório. Quem havia
visto o refeitório em dia de aula, dificilmente conseguiria acreditar que
aquele lugar pudesse ficar tão quieto. Com todas as luzes apagadas e com o
silêncio absoluto, a escola afigurava-se mais como um mausoléu desolado e
ganhava uma aura macabra, como se os espíritos dos alunos pudessem ser vistos,
correndo e gritando pelo pátio, subindo as escadas, conversando nas mesas,
tropeçando nos próprios cadarços e fazendo as pequenas maldades que fazem as
crianças. Imersa naquele breu de profunda tristeza, a novata transpirava medo,
e as três mal conseguiam esconder o deleite com a situação. Então, cercaram a
menina e, com as lanternas projetando luz por baixo do queixo, começaram a
explicar o ritual:
—
Você sabia que esse colégio pegou fogo, há muitos anos?
—
Não... não s-sabia...
—
Foi um terrível incêndio que começou com um curto-circuito provocado por uma
brincadeira idiota, de uma aluna que queria assustar os outros apagando as
luzes da escola. Em pouco tempo, o fogo se alastrou e esse mesmo refeitório que
estamos agora foi tomado por um mar de desespero. Por milagre, todos os alunos
conseguiram escapar. Todos, menos um. Menos uma...
—
Uma aluna chamada Maria. Ela estava no banheiro quando os gritos começaram.
Desesperada, não conseguiu abrir a porta, e a fumaça a asfixiou, lentamente. Tomada
pela loucura de uma morte iminente e terrível, começou a arranhar o próprio
rosto e os próprios olhos. O calor infernal fez com que bolhas explodissem em
seu corpo, e ela acabou por cortar o próprio pescoço com um estilete que trazia
consigo. Seu corpo só foi encontrado três dias depois, completamente
carbonizado. Quando a escola foi reconstruída e as aulas recomeçaram, as alunas
passaram a sentir um calafrio toda vez que entravam no banheiro. Era como se
mãos invisíveis tocassem seus cabelos, como se dedos malignos tentassem
arrancar seus olhos. Não era raro ver alguém sair chorando em completo estado
de pavor, relatando que havia visto a aluna morta aparecer no espelho, com
olhos sem íris, cabelos loiros e chamuscados, cheia de arranhões medonhos em um
rosto branco como o dos defuntos, pescoço cortado e com algodão preenchendo os
buracos do nariz e dos ouvidos.
—
A rapariga que provocou o incêndio saiu da escola, mas, algum tempo depois,
soube-se que ela havia morrido misteriosamente no banheiro de sua casa. Seus
olhos foram arrancados, e a polícia não achou vestígios deles em nenhum lugar. Mas
isso não foi o mais bizarro. No espelho da cena do crime estava escrito com o
sangue – “Durmo agora, depois da doce vingança. Quem quiser me acordar, em
frente ao espelho chame três vezes meu nome: MARIA SANGRENTA”.
Apavorada
pela história, pela escuridão e pelo silêncio sepulcral do vasto refeitório
vazio, a novata suou frio, respirou fundo e perguntou, com a voz quase
inaudível:
—
E... e o q-que vocês q-querem q-que eu f-faça?
—
Ora, queremos que você vá até o banheiro e chame a Maria Sangrenta, para que a
veja, como nós a vimos.
—
M-mas.. mas... eu estou com muito medo...
Disse
isso e começou a chorar, mas logo foi interrompida pelas três belas garotas,
que agora falavam alto. A doçura da voz havia desaparecido:
—
Então você prefere continuar sendo ridicularizada todos os dias? Prefere perder
a nossa proteção? Quer cuspir na amizade que lhe oferecemos de braços abertos?
Não quer mais ser nossa amiga?
—
N-Não é isso, é que... eu quero... m-mas...
—
ENTÃO CHEGA DE “MAS”! Se quer mesmo, larga mão de ser medrosa e vai naquele
banheiro, AGORA!
Ela
foi. Soluçando, mordendo os lábios com força, ouvindo cada passo ecoar pela
vastidão escura, sentindo o coração bater disparado no peito e o suor frio
escorrer pelo rosto. Mas foi. Entrou no banheiro, segurando a lanterna com mãos
trêmulas. Do lado de fora, segurando a risada, suas ‘amigas’ apoiaram e
instruíram – “Isso mesmo! Agora olha para o espelho e chama bem alto pelo nome
dela!”. O primeiro chamado saiu fraco, com a voz embargada:
—
M-Maria... Sangrenta...
Respirou
fundo, e dessa vez conseguiu chamar com mais força.
—
Maria Sangrenta!
Vendo
seu reflexo no espelho, iluminado apenas pelo pálido feixe de luz, a moça juntou
a raiva de vários anos de troças, apelidos e humilhações e, num grito imbuído
de fúria, chamou pela terceira vez:
—
MARIA SANGRENTAAAA!!!!
Silêncio.
Cinco
ou seis intermináveis segundos de silêncio.
Então,
a lanterna apagou, como se a pilha tivesse acabado. Em seguida, um grito terrível
e estridente, que só poderia ser dado por alguém em completo estado de pavor,
fez-se ouvir. Do lado de fora, as três amigas gritaram também, devido ao susto.
Depois, mais silêncio. Minutos passaram até que o trio resolveu ir à porta do
banheiro, chamar pela novata. Sem obter resposta, acabaram tomando coragem de
entrar, com os braços dados e respiração ofegante. Com passos curtos, avançavam
na escuridão, até que, no fundo do banheiro, as lanternas iluminaram uma
silhueta humana encurvada, virada de costas, completamente estática. Perguntaram,
com a voz tomada pelo medo:
—
Ursinha... é... é v-você?
—
O q-que... o que aconteceu, ursinha?
—
Ursinha, fala com a gente...
A
figura tétrica começou a se virar lentamente, revelando a face branca que se
escondia atrás dos grossos cabelos. Então ela disse, com voz baixa — “Eu já
lhes disse...”, e completou a frase em tom demoníaco, enquanto avançava em
velocidade sobrenatural na direção das meninas:
—
QUE NÃO GOSTO DESSE APELIDO!
Cravou
os polegares nos olhos azuis da primeira moça, fazendo-a se contorcer em agonia.
E continuou falando, com a voz dos mais perversos demônios do inferno:
—
MEU NOME É...
Com
unhas afiadas como as garras de uma terrível besta selvagem, cortou a garganta
da segunda, calando os gritos histéricos e fazendo o sangue jorrar no azulejo
escuro.
—
MARIA...
Puxou
a última pelos cabelos, impedindo que fugisse. Arranhou-a com violência, acabando
irreversivelmente com toda a beleza daquele rosto. Fitou-a com os olhos vazios,
para que sua face de pesadelo lhe atormentasse as lembranças por todo o sempre.
—
...SANGRENTA!!!
Saiu
do banheiro e desapareceu, imiscuindo-se às trevas. A moça de olhos azuis
morreu no hospital. A outra, que teve o rosto arranhado, não conseguiu mais
viver sem a única coisa que a tornava especial. Foi encontrada no banheiro de
casa, com os pulsos cortados. Em seu espelho, estava escrito com sangue ainda
escorrendo – ‘Agora você será minha... para sempre...’. A menina baixinha nunca
mais foi vista naquele colégio. Dizem que seus pais mudaram de cidade,
sentindo-se inseguros depois dos brutais assassinatos ocorridos na escola.
Como
disse antes, sei que é difícil acreditar em tal história, mas ela aconteceu de
fato. E não quero para você, minha neta, o mesmo destino daquelas meninas.
Acredite – o espírito da Maria Sangrenta ainda vive, passando de corpo em
corpo, adormecendo e despertando de tempos em tempos. E pode estar mais perto
do que você imagina.
Com
amor,
Sua
avó.”
Um
calafrio percorre a espinha da menina após a leitura da carta. No silêncio da
meia-noite, decide ir conversar com a avó, para esclarecer que tudo não passou
de uma brincadeira e conseguir dormir tranquila. Porém, seu corpo congela logo
ao sair do quarto. No final do corredor, uma silhueta humana estava encurvada
de costas, no centro do banheiro. A passos lentos, a menina avança na escuridão
e pergunta, com voz amedrontada:
—
Vó... aquela história... não era verdade, era? Vó, para com isso, a senhora
está me assustando... vó... como a senhora sabia?... Vó... a mamãe uma vez me
falou que você odiava um apelido dos tempos de escola... e esse... e esse
apelido era... Ursinha...
—
Sim, é verdade – disse a figura parada no centro do banheiro escuro. O corpo
era da avó, mas a voz, era de demônio. – Sua avó não gostava de ser chamada de Ursinha.
Mas eu não sou a sua avó. Ontem, na escola, você me chamou três vezes na frente
do espelho, não foi? Você queria me ver, não queria? Então, agora você vai
ver...
—
Vó... para... eu tô com muito medo... VÓÓÓÓÓ...
Biografia
Fabio Batista - O
autor nasceu e cresceu (bom... crescer é modo de falar, porque parou nos 1,67)
em São Paulo, cidade que odeia nos dias úteis por causa do trânsito e nos fins
de semana por causa da ciclofaixa, mas de onde, num tipo de síndrome de
Estocolmo Edipiana, sente saudade já no segundo dia das férias. Estudou para
ser desenhista, tentou ser roteirista, acabou virando Analista de Sistemas (e
tem consciência que isso não faz o menor sentido). Começou a escrever meio que
por acaso e acabou pegando gosto pela coisa (na verdade, foi uma maneira que
encontrou de economizar com terapia). Participou de algumas antologias, possui
alguns trabalhos publicados na Amazon, foi finalista do Prêmio SESC 2012,
categoria contos, e finalista do Prêmio SESC 2016, com o romance “A Redenção do
Anjo Caído”. Detesta falar sobre si mesmo (principalmente em terceira pessoa) e
procura escrever coisas que despertem emoções, lágrimas e sorrisos, prezando sempre
pela qualidade literária.
Vem falhando miseravelmente até aqui, mas continua
tentando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário.