Mariana dormia profundamente quando Adrian a içou do mundo
dos sonhos.
“Acorda, Má. Tem alguma coisa do outro lado da porta.”
Ela abriu um milímetros das pálpebras e tornou a fechá-las.
“Claro que tem. O seu medo. Por que não fica quieto e volta
a dormir?”
Adrian a sacudiu mais uma vez; tudo o que conseguiu foi apreciar
suas costas.
Talvez fosse melhor se acalmar e voltar para a cama;
procurar pelo sono, fazer o que esperavam dele. Mãe dizia que ele já era um
homenzinho desde o sete; Pai o tratava da mesma maneira desde os cinco, Adrian
não queria decepcioná-los além do que vinha fazendo até os nove.
Sem muita convicção, Adrian retornou à sua cama. De costas;
ele não tiraria os olhos da soleira da porta, não arriscaria ser tão leviano.
Havia alguém do outro lado, claro que sim. Respirando, esperando, raspando a
cauda contra o sinteco do chão. Ele, ou
eles (ou simplesmente aquilo que respirava fundo quando ninguém estava
ouvindo). A coisa o perseguia há alguns anos. Às vezes o monstro se escondia no
forro da casa, em outras preferia o escuro da mobília. Quando estava muito,
muito obstinada mesmo, a coisa se escondia na fumaça espessa da calefação do
banheiro. Ninguém entendia essa mania de Adrian tomar seu banho de portas abertas,
como se já não soasse estranho de qualquer maneira, Adrian era um menino muito
tímido. Seria por esse motivo que a coisa o perseguia? Por que ele era envergonhado? Não, fantasmas não são
como os valentões do colégio. O mais provável é que Mariana estivesse certa e
ele fosse mesmo um bobão-covarde-cheio-de-imaginação.
Tentando se apoiar nessa ideia, Adrian chegou à cama e descalçou
as sandálias de tecido. Lentamente içou os pés até a cama, sem deixá-los tocar
o chão. Ele não sabia o motivo, mas parecia que se tocasse o piso, mesmo de
raspão, mesmo uma pontinha, isso
faria toda diferença para o monstro. Adrian também tinha outros rituais, como
fechar as portas três vezes (indo e voltando a maçaneta), contar os últimos
pingos da torneira do banheiro — ela nunca parava imediatamente ao ser fechada
— e certificar-se que eram ímpares; também precisava tomar exatamente cinco
goles d’água no último copo da noite (isso também valia para o achocolatado ou
algo que Mãe preparasse).
Tudo parecia melhor agora. Os pés estavam recolhidos dentro
das cobertas, a luz da soleira brilhava sem interrupções, não havia ruídos,
dentro ou fora do quarto, que não fosse a respiração pesada de Mariana.
Mesmo assim... Não. Não estava tudo bem. Quem ele queria enganar?
Seu coração ainda estava acelerado, seus olhos não tinham
coragem de ficarem fechados, e a bexiga parecia cheia, a ponto de vazar, apesar
das poucas gotas dentro de suas paredes elásticas (Adrian poderia esquecer de
escovar os dentes, mas sempre se lembrava de se aliviar antes de dormir). Lançou os olhos para Mariana. Ela continuava de costas, dormindo, ou
provavelmente evitando olhar para seu irmão e ser flagrada acordada. Isso não
fazia de Mariana alguém pior do que qualquer outra irmã mais velha no mundo,
mas como todo ser humano que arriscou passar uma noite inteira com Adrian, ela
havia perdido a paciência.
Pense em uma música,
Mãe ensinou.
Ela era esperta, se havia algo que mantinha os monstros
afastados, era uma canção. Adrian sempre escolhia uma música que ele não gostasse
muito. Isso também era esperto, imagine só se ele pensasse em uma canção que adorasse
e acabasse enjoando? Ou pior: e se os monstros
gostassem dela? Com tantas opções (lembrou de umas quatro naquele instante) acabou
escolhendo uma da Katy Perry. Falava sobre uma menina que — arrrrggghhh, e
seria arghhhh até os treze anos — beijava outra menina (sim, ele tinha ouvido Mãe
reclamando que Mariana só ouvia aquela droga de música). Não importava, Adrian
poderia pensar em beijos de elefantes com tartarugas, em mosquitos cor-de-rosa
com asas florescentes, em um funk sujo apodrecendo as nuvens do céu, desde que sua
melodia bizonha afastasse os
monstros.
“I kissed a girl... nãnãnã, nã nãnãnã...”, cantarolou
mentalmente, meio de qualquer jeito, esmorecido, com o máximo de inglês que
conhecia em seus nove anos de vida.
Precisou fazer por algum tempo, até que seus olhos se
rendessem à primeira piscada.
“I kissed a
girl... nãnãnã, nã nãn...” (melhor cantar de novo)
“I kissed a girl... nãnãnã...” (para espantar o medo e as
criaturas da noite)
“I kissed a girl...”
“Cala essa boca, Adrian!”, um travesseiro voou pelo quarto
em uma velocidade alta demais para ser quantificada na terceira infância.
Acertou Adrian em cheio. Sua cabeça ricocheteou para o lado e, quando voltou ao
lugar original, havia uma adolescente descabelada ao lado da sua cama.
“Pelo amor de Deus, por que você não pode dormir como todo
mundo?”
“É que eu... Eu tô sem sono.”
Mariana passou as mãos na própria cabeça em uma inútil
tentativa de amansar os cabelos. Bufou; depois recuperou o travesseiro e o
colocou debaixo do braço; permaneceu de pé por um instante. Ela conseguiu não
dizer nada de ofensivo para o irmão caçula, mas não poupou algumas sacudidas de
cabeça de um lado para o outro.
“Tô com medo, Má. Tem alguma coisa ruim aqui dentro. Dessa vez é de verdade.”
Adrian olhou para todos os pontos cardeais, procurando por
algo inserido na escuridão dos móveis que comprovasse sua teoria. Mesmo com
Mariana acordada ele ainda tinha medo, ainda tinha aquela sensação de que alguém o observava.
“Sem essa, Adrian. A única coisa ruim dentro desse quarto é
a sua cabeça”, ela disse e girou o corpo em direção à cama rosa.
“Eu não tenho culpa. Quando o medo vem eu não consigo dormir”,
Adrian confessou, um pouco tarde demais.
Mariana parou de caminhar, estava a dois passos da sua cama.
“O papai vai adorar acordar no meio da noite”, disse, sem
girar o corpo. “A mamãe então? Nossa, ela vai amar. Aposto que eles vão ficar
tão felizes que vão te colocar de castigo até os quinze anos. Eu poderia
acordá-los. Eles ficariam bravos, e eu dormiria em paz. Mas como você é meu
irmão, vou te dar uma chance; só uma. Não me interessa se você vai ver a Fada
do Dente, a Cuca ou o Diabo em pessoa, se eu ouvir um pio depois de me deitar, Adrian,
eu juro por Deus que vou direto para o quarto deles.
“Mas...”
“Eu não vou falar de novo.”
O próximo movimento foi o corpo de Mariana se lançando
contra a cama e fazendo o estrado gemer.
Ela não era gorda, mas também não era
magra. E ela tinha as pernas compridas e seus peitinhos estavam começando a
aparecer. Talvez esse fosse o motivo d’ela ser tão brava, por que seu corpo
estava mudando — e para pior na opinião de Adrian.
Rendido, o garoto voltou a cantarolar sua canção —
mentalmente, o que era bem difícil e raramente trazia algum resultado. O som
era importante para afastar os habitantes do escuro. Eles não gostavam de
música, de vozes humanas, eles não gostavam de nada que fosse alegre e
movimentado. Por esse motivo apareciam à noite, quando a casa estava escura,
quando a imaginação conseguia trazer os piores momentos do dia à superfície.
‘Ninguém esconde os segredos do travesseiro’, essa era uma frase de Mãe, uma
que ela aprendeu com a mãe dela. Mas que segredos um menino de nove anos teria
para esconder? Não... Adrian não tinha segredos, não segredos de verdade.
Ele se encolheu na coberta e esperou que o sono o derrubasse
dessa vez. A luz da soleira brilhou sem interrupções por tempo o bastante para
fazê-lo bocejar. Seu corpo começou a ficar pesado. A respiração irritada de
Mariana se acalmou, dando lugar a um ronronar suave e ritmado. Adrian
experimentou alguma confiança. Pensou que se ele conseguisse dormir uma única
noite sem se apavorar, os monstros perderiam a força. E ele estava quase lá. As
piscadas cada vez mais pesadas, os músculos finalmente relaxados, os
pensamentos perdendo a conexão com o mundo real. Então...
“Nojento”, alguém sussurrou ao seu ouvido.
Adrian abriu os olhos e instintivamente se refugiou contra a
cabeceira da cama. Colocou os joelhos dobrados à frente do corpo e olhou para
os cantos escuros de sempre. Primeiro para o cantinho onde ficava o cabideiro
de cerejeira que ele detestava. Em seguida checou o canto mais próximo à porta,
que também ficava bem perto do interruptor de luz. Estava limpo. Ainda faltavam
dois lugares, os dois esconderijos mais aterrorizantes no mundo de um menino
assustado. Adrian tentou desacelerar sua respiração e ficar em silêncio. Se
alguma coisa estivesse sob ele, no escuro
da cama, ele poderia ouvir. Não conseguiria fazer isso durante o dia,
quando os ruídos do mundo aniquilavam a verdade do medo, mas à noite, naquela noite, ele poderia ouvir uma
formiga espirrando.
“Coragem, você não quer ficar de castigo”, disse, tão baixo
que nem ele mesmo ouviu.
Nada sob ele, mas ainda havia o esconderijo perfeito, aquele
que, por mais que implorasse, sempre estaria em seu quarto.
Uma das portas do guarda-roupa não fechava totalmente, a
segunda, da esquerda para a direita, ficava na frente das gavetas de Mariana,
abaixo de quatro bonecas velhas. A parte de Adrian naquele monstro de madeira
era como sua presença no quarto, um detalhe, uma concessão quase
insignificante. Parecendo perceber sua atenção, a porta rangeu sem vento algum
capaz de embalá-la.
Adrian ergueu os braços vigorosamente e tapou a boca, para
que nenhum suspiro abalasse o sono sagrado da Princesa Mariana.
“Ai, Deus! Ai, Deus!”, disse, um pouco mais alto do que
gostaria. Não foi o bastante para acordar
Mariana, mas ela se moveu sobre a
cama, gemendo alguma contrariedade frágil, incapaz para acordá-la.
Do armário, algum brilho iluminou a escuridão.
Adrian sabia que o medo tinha olhos. Também sabia que tinha
boca e não se surpreenderia se o medo tivesse garras.
Mas nada disso importava quando o nome de Pai e Mãe eram
invocados. Mariana era severa o bastante para cumprir sua promessa de
acordá-los. E ela diria sobre os filmes de terror que Adrian assistia escondido,
sobre as revistas e os brinquedos. Não adiantaria explicar a eles, não tão
tarde da noite. Pai acordava cedo, Mãe, mais cedo ainda, e nenhum deles ficaria
com a missão solitária de dar um jeito em Adrian. Eles dividiriam como era
certo fazer, e depois dobrariam o castigo.
A porta do armário tornou a ranger, Adrian se encolheu mais
e puxou um pouco do cobertor para cima. O tecido estava sobre as suas pernas
agora, e Adrian travava uma luta consigo mesmo para não içá-lo à cabeça.
Cobrir-se totalmente o protegeria, era quase certo, mas sem ver os monstros,
ele não poderia defender Mariana, Pai ou Mãe. E Deus do céu, como era
apavorante ficar no escuro, ouvindo o que as criaturas tinham a dizer,
esperando que eles passassem bem perto da tenda-cobertor e o deixassem em paz.
Dormir com Mariana foi uma das ideias brilhantes de Mãe. Ela
disse que ele ganharia confiança e que dormiria melhor. Mariana detestou a
ideia, ela só concordou porque o antigo quarto de Adrian se tornou sua nova
academia de ginástica. Ela tinha pesos, uma bola enorme, também tinha uma corda
e uma esteira. Adrian tinha metade de um guarda-roupa e a certeza de ser um hóspede
menos desejado que um verme.
Os ruídos desapareceram por um ou dois minutos. Adrian
relaxou os ombros, respirou mais fundo e secou o suor da testa. Ele os venceu
finalmente? Os monstros, enfim, o deixaram em paz? Sim, era uma possibilidade.
Porque ele tinha ficado calado em vez de gritar por socorro, tinha continuado
dentro do quarto em vez de correr até a cozinha onde sempre havia uma luz
acesa. Adrian estava quase feliz quando seu sangue voltou a congelar dentro de
suas veias.
Havia algo saindo do armário. Um braço, uma mão e três
dedos. Não eram de gente e eram mais escuros que o resto da noite.
A madeira rangeu outra vez e dessa vez continuou até ampliar
a pequena abertura no armário a uns vinte centímetros. Adrian queria gritar,
ele devia gritar! Mas, minha nossa, todos diziam que as coisas eram sua própria
imaginação ganhando forma. E se estivessem certos? Se ele não visse nada de
verdade, se ele fosse apenas um menino bobo e acovardado? Bem, nesse caso era
melhor descobrir antes de ser castigado de novo.
Adrian piscou os olhos com força. Respirou fundo. Quando os
abriu a coisa ainda estava lá. O braço se movia, tentava sair do abrigo,
deixando um pouco de fumaça preta pelo ar parado do quarto. Algo rangeu ao
lado, vinha da cama de Mariana. Sem conseguir resistir, Adrian moveu os olhos
naquela direção. Havia um vulto escuro, um espectro embaçado ao lado da cama. Estava
rebaixado, corcunda, de um modo que sua cabeça estava bem perto da boca da
adolescente. Adrian não conseguia respirar.
Sua imaginação era forte demais,
forte a ponto de interagir com o mundo de verdade.
“Eu não posso gritar,
eu preciso ficar quieto!”,
pensou.
“Covarde!”, disse
o eco de Mariana.
“Você vai mudar de
quarto outra vez”, disse Mãe.
“Não quero mais saber
desses filmes horríveis. Nada de tevê por um mês!”, resumiu Pai.
As coisas também sussurravam; trocavam confissões e traçavam
planos. Adrian conseguia ouvir seu dialeto macabro, arrastado, conseguia sentir
o frio do quarto e respirar o ar cheirando a mofo e água podre.
“Imaginação, é tudo sua imaginação!”, disse. Dessa vez em
voz alta, pouco antes de decidir cobrir a cabeça e prender as cobertas sob as
pernas. Adrian abraçou os joelhos e se recostou à cabeceira da cama. Fechou os
olhos. Não abri-los até que os ruídos terminassem pareceu uma boa ideia.
Não foi tão fácil decidir-se. Não foi nada simples.
Sua imaginação deve ter ficado furiosa por ele tê-la
enfrentado. Dessa vez ela não se contentou com a respiração dos monstros e o
som riscado de suas unhas compridas sobre o piso.
Pouco depois de Adrian se cobrir, eles começaram a
conversar. Ainda pareciam sussurros, exceto que eram altos demais. O frio do
quarto aumentou, a cama saltitou algumas vezes. Adrian sentiu medo, sentiu todo
o medo que conhecia. O ápice do horror veio quando sua imaginação fez Mariana
chorar e gritar. Ela pedia socorro e tentava sair do quarto. A porta estava
trancada, como acontecia em um passado recente quando Adrian tinha seu próprio quarto.
Então Mariana começou a chamar Pai e
Mãe. A imaginação podia ser muito esperta,
era o que parecia. Por que se Pai e Mãe já estivessem acordados, então Adrian
também poderia pedir a ajuda deles. Mas ela podia estar mentindo, como a
imaginação sempre faz. E nesse caso Adrian começaria a gritar e acordaria Pai e
Mãe. Eles ficariam zangados, Mariana faria sua parte e ele só voltaria a ser
feliz aos dezoito anos.
Analisadas as possibilidades, Adrian decidiu ficar quieto até
que os ruídos terminassem. Algo que só aconteceu pela manhã, quando o sol
esquentou o quarto e iluminou o cobertor que cobria sua cabeça. Adrian bocejou
e se espreguiçou dentro dele. Seria sua imaginação capaz de forjar um
amanhecer?
Talvez fosse, porque o impossível ainda acontecia dentro daquele quarto.
“Tem outro ali, embaixo do cobertor”, Adrian ouviu a voz
grossa de um homem dizer.
“Deve ser o corpo do menino. Meu Deus, que horror. Como é
possível que ninguém tenha ouvido os gritos?”, alguém comentou, uma mulher.
Adrian começou a sentir medo de novo. Mas tudo era diferente
com a luz da manhã, principalmente sua coragem. Confiante, ele suspendeu um
pedacinho do cobertor.
Havia sangue na cama cor-de-rosa de Mariana. Um de seus
braços pendia para fora, uma enorme mordida escavava o pulso esquerdo. Adrian
também notou os dois policiais dentro do quarto. Não eles todos, apenas da cintura para baixo. Eles se aproximaram e arrastaram
o cobertor de Adrian para cima. A luz do dia o cegou, era bem mais forte que
qualquer pesadelo noturno. Já era tarde, já era dia; já passava da hora de
Adrian abrir seus olhos e descobrir se sua imaginação duraria para sempre.
Biografia
Cesar Bravo tem dedicado boa parte do seu tempo a nos
assustar. Depois de anos publicando de forma independente, sobrevivendo ao
garimpo das editoras e conquistando leitores, Cesar é o um dos novos autores
nacionais contratados pela editora DarkSide.
Sempre bom ler um texto de Cesar Bravo. Muito bom.
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