A
primeira vez que ouvi o grito da bruxa tinha sido há muito tempo, quando ainda
era criança e não sabia nada sobre o mundo.
Lembro-me
muito bem daquele inverno chuvoso e gelado típico que se abatia por toda Vale
Escuro, cidadezinha do interior de Minas Gerais.
As ruas se enchiam de neblina, o céu
se fechava totalmente e a chuva desabava torrencialmente sem deixar nenhuma
brecha para que o sol aparecesse e iluminasse as ruas, fazendo com os dias fossem
escuros, tristes, parecendo sempre noite.
E
foi nesse clima sombrio que escutei pela primeira vez o grito da bruxa.
Ele veio como uma punhalada, rápido,
certeiro e afiado, mas também doloroso, alto e arrepiante. Naquela época eu
tinha apenas oito anos e pensei ser brincadeira de alguma criança das redondezas,
mesmo tento ficado apavorada com o som aterrador que acabara de ouvir.
Não
dei muita bola, a princípio, mas o grito se repetiu mais alto e claro do que
nunca.
Depois disso minha memória é permeada
por borrões, lembro-me vagamente de ter falado com minha mãe sobre o ocorrido,
e ser ignorada totalmente.
Essa
é a única coisa que me lembro daquele dia: o grito.
Mas infelizmente aquela não foi a
única vez em que ouvi aquele som aterrorizante. Mais tarde, quando já era uma
jovenzinha com pouco mais de quinze anos, o grito retornou subitamente.
Sequer
me recordava da primeira vez em que o ouvi, mas bastou uma única vez para que
minha memória clareasse e eu me recordasse totalmente de onde havia ouvido
aquele som infernal.
Ele
me foi tetricamente familiar, e surgiu ainda mais alto e claro.
Ninguém ao meu redor pareceu tê-lo
ouvido mesmo eu estando na minha sala de aula cheia de outros adolescentes. Todo
meu corpo se arrepiou como se um gélido vento adentrasse a sala, não por eu ter
novamente ouvido aquele grito aterrorizante, mas pela nítida sensação de que
ele parecia mais próximo do que da última vez.
Novamente não me lembro nitidamente do que
aconteceu, como sempre ocorre ao ouvi-lo, mas sei que minha memória está
ocultando algo realmente preocupante.
Por
que penso assim?
Porque
no dia seguinte fui proibida de entrar no colégio por algo que os professores e
os alunos alegavam que eu tinha feito. Até mesmo minhas amigas se recusavam a
falar comigo.
Mas
nunca soube o motivo, fui apenas isolada da sociedade.
E foi a partir desse dia que minha
mãe começou a ficar realmente preocupada comigo.
Desde
então tenho entrado e saído de consultórios de psiquiatras e psicólogos. Durante
toda a minha adolescência, durante o começo da minha fase adulta, de
consultório em consultório, de especialista em especialista...
Hoje, tendo pouco mais de vinte e
sete anos, continuo me consultando com esses doutores, por vezes fazendo
exames, mas sem nunca encontrarem nada de anormal em mim, pelo menos nada
físico.
Ainda
moro com meus pais, ainda tenho o mesmo quarto que tinha desde a infância sem
nenhuma alteração na decoração, que permanece infantil e antiquada. Ainda deixo
minha mãe comprar minhas roupas, claro, sempre de segunda mão, às vezes até de
terceira, minha família não é rica, não trabalho...
Fico
isolada, sozinha, sendo mal vista pelos adolescentes da região que me
apelidaram de “a doida da escola”, sem eu nem saber ao menos o que fiz para que
me chamem assim.
Ouço-os
passarem defronte minha casa gritando “a doida da escola, a doida da escola”,
mas também ouço, ainda, o grito da bruxa.
Desde aquele “incidente” na escola,
do qual não me recordo, o grito nunca mais me deixou em paz.
Ele
sempre volta, sempre.
Às
vezes uma vez ao dia, às vezes uma ver por semana, às vezes, com muita sorte,
uma vez ao mês. Mas ele sempre volta, o grito, ele sempre volta, mais
estridente, pavoroso e ameaçador do que da última vez, aquele grito...
E a cada vez que ele ecoa em meus
ouvidos perco algum momento de minha vida. Tudo se apaga. Às vezes perco poucos
minutos, outras vezes chego a perder horas inteiras. Certa vez perdi toda uma
semana, mas uma coisa é certa: toda vez que retorno desses “apagões” alguma
coisa terrível aconteceu e, com isso, as poucas pessoas que ainda tenho ao meu
redor sempre ficam ainda mais receosas de se aproximarem de mim.
Minha mãe contratou uma enfermeira
para cuidar de mim, coisa que ela faz em tempo integral, mas sei que ela nutre
um medo profundo por mim.
Mesmo
no estado em que estou não sou burra, consigo perceber isso perfeitamente, vejo
o horror em seus olhos, o receio em se aproximar.
Mas
por que ela ainda continua trabalhando conosco?
Por
que minha mãe, das antigas, que acredita que cada família deve cuidar dos seus,
contratou uma enfermeira para cuidar de mim, sacrificando assim o pouco da
renda que possui?
Houve
um tempo em que era meu pai quem cuidava de mim, e minha mãe o ajudava, mas em uma
ocasião, após um dos meus “apagamentos”, algo aconteceu.
Meu pai morreu.
Não sei exatamente o que aconteceu,
mas temo que eu possa ter sido a responsável.
Depois
disso minha mãe mudou comigo, ela ficou ainda mais distante e temerosa, foi
então que contratou a enfermeira, provavelmente por não ter mais coragem de se
aproximar de mim.
Sequer
me dou ao trabalho de tentar saber o nome da minha cuidadora porque sei que não
vou guarda-lo. Minha memória é fraca e deficiente.
Para
mim ela é apenas “a enfermeira”, e é assim que a chamo.
Mas creio que ela não tem sido de
grande ajuda. De uns tempos pra cá o grito da bruxa tem sido mais constante e
aterrador do que nunca. Meus momentos perdidos tem ficado cada vez mais longos
e frequentes, permanecendo sem explicação.
Parece que ninguém mais se choca com
isso tudo, as crises, os apagões... Sinto que elas estão fingindo muito bem e
escondendo de mim as coisas hediondas que faço enquanto estou fora de mim
mesma, quando estou “apagada”.
Sinto
que estou sendo enganada, sinto que estou sendo deixada de lado, como se estivessem
desistindo de mim, como se já não ligassem mais para meu estado de saúde, como
se já não quisessem mais me ajudar, e isso me causa muito medo porque agora o
grito da bruxa tem ficado cada vez mais próximo.
Às vezes posso até sentir o hálito
quente e mal cheiroso da bruxa próximo ao meu pescoço, posso sentir a presença
macabra e demoníaca da dona do grito roçar meus longos cabelos, posso sentir a
influência negativa desse ser me espreitando por cima dos ombros.
Minha mãe e minha enfermeira parecem
já não se importarem mais com isso, parecem ter entendido serem incapazes de
fazer algo para me ajudar.
Isso
faz que eu tome uma decisão imediata: tenho que agir sozinha, se eu mesma não
tentar afastar de mim essa sombra que grita horrivelmente, temo que perderei
totalmente minha vida, e não apenas algumas horas.
Biografia
Rubens P. Junior é escritor
em tempo livre e dono do canal literário do youtube, “Ler Vicia”. Mora em uma
cidadezinha do interior de Minas Gerais igual à Vale Escuro, junto com sua
filhinha e sua esposa e jura que existem bruxas em sua vizinhança.
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