Conto - O Espírito de Stonehenge.

contos de terror

O Espírito de Stonehenge

                                                         1

Planície de Salisbury, Inglaterra, nos dias atuais...


— Como vocês podem ver – a guia da excursão explicou. – Stonehenge, que do inglês arcaico traduz-se: “stan” = pedra e “hencg” = eixo, é um monumento megalítico, supostamente da Idade do Bronze. Foi denominado pelos saxões de “Hanging Stones” ou “pedras suspensas”. O monumento todo é composto por setenta blocos de arenito de aproximadamente cinquenta toneladas cada um e que medem, em média, cinco metros de altura, dispostos em formação circular, de modo a constituir vários círculos menores e concêntricos. O que lhe conferiu inúmeras referências, em cantos e escritos medievais antigos, como “Dança dos Gigantes”. Existem diversas lendas e mitos acerca de sua construção, creditados muitas vezes aos povos da antiguidade, porém jamais comprovados. Uma das opiniões mais populares nasceu de John Aubrey que no séc. XVII, muito antes do desenvolvimento dos métodos de datação arqueológica usados hoje em dia, foi quem primeiro associou este monumento e outras estruturas megalíticas da Europa aos antigos Druidas. Mas, na realidade, os Druidas só apareceram na Grã-Bretanha em algum momento após o ano 300 a.C., mais de um milênio e meio depois que a datação por carbono-14 nos sugere que os últimos círculos de pedra foram erguidos e os lintéis assentados. Entre as décadas de 1950 e 1960 foram conduzidos diversos estudos acurados em todo Stonehenge, nos quais se chegou à conclusão de que o lugar inteiro foi erigido para permitir a observação de fenômenos astronômicos específicos como os solstícios de verão e de inverno, os equinócios, as fases da lua, e os movimentos dos astros e dos corpos celestes, o que propiciava aos seus construtores uma exata noção temporal, indicando-lhes os dias mais propícios aos seus rituais; e determinando, com exatidão, os ciclos agrícolas. Outra curiosidade sobre Stonehenge é que uma série de estudos arqueoastronômicos revelou as extraordinárias habilidades matemáticas e de engenharia arquitetônica dos seus primitivos construtores que, cerca de dois mil anos antes da formulação oficial do Teorema de Pitágoras, já incorporaram, em seus círculos de pedra, o conceito e o valor do “PI”. E não devemos nos esquecer de que, sempre no dia 21 de Junho, o Sol nasce com perfeita exatidão sob a pedra-eixo central do círculo principal...

Enquanto a guia explanava sobre as ruínas britânicas ao pequeno grupo de turistas que a acompanhava, um vulto etéreo os observava de longe, envolto em sombras.

Ninguém podia vê-lo, pois se tratava de um espírito: o espírito guardião de Stonehenge. Mais do que isso, era um prisioneiro das ruínas megalíticas.

Aproximou-se do grupo a tempo de escutar as últimas palavras da guia.

— Resumindo: Stonehenge é um indecifrável mistério do nosso passado, que parece desafiar as forças do tempo e da natureza, bem como as pretensões dos que procuram descobrir o seu significado. Mesmo que passemos o resto das nossas vidas interrogando estes gigantes de pedra tosca, que contemplam seus irmãos derrubados, a nossa curiosidade jamais será plenamente satisfeita ante o vasto silêncio que os envolve...

O espírito sorriu de forma enigmática.

Aos primeiros sinais do crepúsculo, a excursão, a última do dia, finalmente deixou o monumento a sós com o seu fantasma protetor.

Ele sim, conhecia a verdadeira história do lugar, uma vez que a sua própria história se encontrava intimamente ligada aos místicos círculos de pedras.

Tentou por mais uma vez ultrapassar os limites do fosso externo, mas uma barreira invisível o impediu de prosseguir além. Continuava encarcerado, preso ao antigo “Templo do Céu”.

Preso por conta dos seus pecados e iniquidades. Por conta dos seus crimes, permanecia ele condenado a vagar, solitário e infeliz, por entre aqueles gigantes de pedra que, por sua vez, delimitavam as fronteiras entre a dimensão dos vivos e a dimensão dos mortos, até o Fim dos Tempos.

Foi então que, acabrunhado e arrependido, sentou-se sobre uma pedra de tonalidade azulada que havia servido de altar no centro do santuário megalítico e deixou a mente voar de volta ao passado. O seu passado. E, como em um filme 3-D, ele reviveu cada um dos acontecimentos que inevitavelmente o conduziram àquela fatídica condição...

2

Condado de Wiltshire, milhares de anos atrás, tantos que o próprio tempo já não é mais capaz de ostentar recordações daquela época...

Havia dois anos que Varek ultrapassara a barreira da infância e se tornara um homem, de modo que o jovem trazia no peito e no rosto as marcas tribais de sua nova condição, sob a forma de tatuagens. Vestia uma túnica de pele de urso e tinha o cabelo longo e entrançado, atado em um rabo de cavalo com uma fita de couro de boi. Carregava consigo um arco de teixo, com pontas de osso e uma corda de tendão bovino untada com gordura suína, bem esticada. Do seu ombro pendia uma bolsa cheia de flechas ornamentadas com penas multicoloridas.

Mas, ao contrário do que se poderia supor, Varek não se encontrava a caçar animais silvestres para ajudar a alimentar a tribo. A sua intenção era outra, bem menos nobre...

Durante todo aquele dia, ele perseguiu o seu “alvo” pela floresta, oculto em meio às folhagens e entre os frondosos carvalhos.

Ao cruzar por uma clareira, Varek percebeu que o céu estava carregado de nuvens negras; e que relâmpagos riscavam o horizonte distante. Sinal de que em breve choveria. Portanto, ele precisava se apressar.

Foi quando, ao cruzar por um pequeno córrego de águas cristalinas e frias e adentrar a clareira além deste, surgiu a oportunidade ideal.

O homem que Varek vinha espreitando havia acabado de abater um gordo javali. No momento, ele estava abaixado por sobre a presa, a fim de arrancar a flecha de seu dorso. E o melhor: se encontrava absolutamente sozinho.

Varek afastou as ramagens e saiu das sombras.

Ao enxergá-lo, o outro sorriu-lhe animado.

— Salve irmãozinho! Hoje teremos um belo banquete na tribo...

Varek nada disse. Limitou-se a retirar uma flecha de penas negras da bolsa e a posicionou no arco de teixo, esticando a corda ao máximo.

Garthall, o caçador, estava ocupado com o javali e não percebeu a manobra do irmão mais novo. E só quando o rapaz já se encontrava a menos de quatro passos de distância foi que a ficha caiu.

Ele se virou. E encarou, incrédulo, a flecha apontada para si.

— Por Dagda... O que significa isto, Varek? – indagou perplexo, tateando o chão em busca do seu arco, ao concluir que a intenção do mais jovem não era de baixar a arma e sim de dispará-la.

Tarde demais.

Varek soltou a flecha. A seta atingiu o alvo com violência, fazendo com que Garthall fosse lançado para trás, caindo de costas sobre o javali ensanguentado. A flecha enterrou-se profundamente no peito do homem, ficando com apenas um palmo da haste de madeira visível.

Sem conseguir olhar nos olhos do irmão ferido, Varek adiantou-se e chutou para longe o arco e a aljava deste.

Naquele preciso instante, um trovão ensurdecedor fez estremecer os céus, prenunciando o temporal que estava chegando.

Garthall gemeu de dor, logrando erguer-se corajosamente de joelhos.

— N-não entendo, Varek... Por quê? – interpelou ao mais novo.

— Não aguento mais viver na sua sombra, irmãozinho! – Varek desabafou com lágrimas nos olhos. – Você sempre foi o melhor em tudo... O queridinho de todos... O preferido de nosso pai... E as coisas só pioraram depois da morte do velho. Como o primogênito, você herdou a chefia da tribo, enquanto eu tive que me contentar com um mero posto de caçador. Desde então, você detém toda a riqueza da tribo, enquanto eu mal tenho o que comer e com o que me vestir. E não bastasse tudo isso, ainda me roubou Jenna, a mulher que eu sempre amei, desde criança, tomando-a como sua esposa. Com a sua morte tudo o que me foi negado até agora, me será restituído...

— Não faça isso... Os deuses o castigarão! – murmurou o moribundo.

— Nada temo, pois busco apenas justiça, de modo que os deuses nada têm que ver com isso! – Varek cuspiu, já posicionando uma segunda flecha no arco de teixo, apontando e retesando-o.

— Pelo amor de Dagda! V-você enlouqueceu, Varek... Desarme o arco e eu prometo esquecer esse disparate... – Garthall ainda tentou dissuadir o irmão.

Varek não o ouviu. E a segunda flecha cravou-se na jugular de Garthall no exato instante em que a tempestade os atingiu.

3

A chuva se tornava cada vez mais forte, criando enormes poças lamacentas por todo o terreno. O que dificultava a tarefa de Varek. Ele lutava contra a lama para escavar, com as mãos, um buraco de tamanho e profundidade capazes de ocultar o cadáver do irmão. Quando se deu por satisfeito, dirigiu-se ao defunto e decepou-lhe as mãos, os pés e a cabeça com uma rústica machadinha de sílex, pois segundo a tradição de seu povo, dessa forma o espírito do morto não teria condições de se vingar dele no futuro, uma vez que não teria como andar e nem como portar armas. E então arrastou o corpo esquartejado, enterrando-o na vala recém aberta; mas as extremidades, enterrou bem longe dali, uma separada da outra, em quatro buracos menores; e a cabeça enterrou aos pés do mais alto e sagrado carvalho da floresta de Nemeton.

Ao completar o serviço colocou o javali que Garthall abatera nas costas e retornou à aldeia.

Garthall tinha razão: naquela noite haveria um belo banquete na tribo.

4

Várias luas se passaram.

Naquela noite, uma nova tempestade atingiu a aldeia de Wiltshire. O vento soprava forte e inclemente, enquanto os relâmpagos iluminavam o firmamento, rasgando os céus; alguns descendo até à Terra, a fim de atenuarem, mesmo que momentaneamente, as trevas que haviam tornado o mundo escuro como breu. Os trovões rugiam ferozes e a chuva despencava violenta e algoz sobre Wiltshire, de modo que todos na aldeia se refugiavam em suas tendas ou cabanas.

Os deuses urravam e choravam. E aos homens cabia apenas temê-los.

Com o sumiço de Garthall, o conselho dos anciãos se reuniu para decidir os rumos da tribo para o futuro. E depois de muito discutirem, chegaram à única solução possível: Garthall foi dado como morto; e Varek, como seu único irmão de sangue e herdeiro legítimo, deveria assumir o posto de chefe da tribo, assim como poderia reclamar para si todos os pertences do morto. Inclusive Jenna, a encantadora esposa deste.

Varek mal podia esperar para poder tomar posse de tudo o que pertencera, em primeira instância, ao pai e depois ao irmão mais velho. Todavia, o maior prêmio, o mais cobiçado de todos, seria possuir a bela e doce Jenna. Ele ansiava loucamente pelo momento de poder tomá-la como esposa e então poder dispor dela como bem entendesse. Mas, segundo as tradições da tribo, isso somente se daria depois que ele fosse legalmente empossado no lugar do irmão como chefe guerreiro da aldeia.

Para o seu deleite, a cerimônia de posse foi marcada para dali a três luas, coincidindo com as festividades do “Samhain” ou “A Grande Festa dos Mortos”, como também era conhecida, a qual o seu povo celebrava sempre no princípio de Novembro, marcando o início da hibernação da Natureza. Ao contrário do que acontecia com a “Festa do Imbolc”, normalmente celebrada nos primeiros dias de Fevereiro, na qual comemoravam o recomeço da vida após a hibernação do inverno.

5

Três luas depois, ao pôr do sol do “Samhain”...

Naquela época os colossais círculos de pedra que hoje formam Stonehenge ainda não existiam. Em seu lugar havia somente um templo rústico, composto por uma fileira de enormes postes de carvalho, fincados no solo e dispostos em anéis ao redor de uma clareira aberta da floresta de Nemeton, ao sul da aldeia. Neste antigo templo, erigido pelos ancestrais do povo de Varek, eram realizados todos os tipos de rituais, desde rituais de morte e funerais, casamentos, ritos de passagem, de sexo, de cura, festas de colheitas e celebrações astronômicas, até consagrações e sacrifícios de sangue aos deuses.

Naquele ano, porém, em paralelo às comemorações e rituais já tradicionais do “Samhain”, se daria a posse de Varek como o novo chefe guerreiro da tribo de Wiltshire. E ele mal cabia em si de tanta felicidade. Estava ansioso para tomar posse do que agora era seu por direito, principalmente a nova esposa...

Aos primeiros sinais do crepúsculo solar, enormes fogueiras foram acesas. A tribo inteira se reuniu em volta dos anéis concêntricos formados pelos troncos de carvalho, cantando e dançando de forma ritmada ao redor dos mesmos. Mas seguindo a tradição, ninguém ousava adentrar os limites do templo, que podiam ser pisados somente pelos sacerdotes e líderes guerreiros da tribo.

Uma espécie de licor destilado, produzido de mel e ervas alucinógenas, foi distribuída, em larga escala, entre os presentes. Em pouco tempo, os mais fracos começaram a gritar ensandecidos, posto que passaram a ter alucinações; alguns se tornaram belicosos, puxando briga com quem estivesse perto, ou sentiram-se subitamente doentes, vomitando tudo o que haviam ingerido durante o dia; e outros ainda, os mais fracos para a bebida, simplesmente se deixaram cair na relva úmida e adormeceram embriagados. Porém a grande maioria permaneceu dançando e cantando em contemplação ao redor do antigo “Templo do Céu”.

Com a chegada da noite, os sons de chifres de bois soprados anunciaram o início dos rituais. O povo silenciou. Encerraram-se as danças e os cânticos. E os sacerdotes da tribo, em fila indiana, adentraram o templo pela “Porta do Sol”, voltada para o nascer do astro-rei. Vestiam túnicas de pele de raposa sobre os corpos cobertos com pasta seca de greda molhada, o que lhes conferia sinistros desenhos aos rostos. Ossos e caveiras de pequenos animais silvestres pendiam de seus pescoços sob a forma de macabros colares. Alguns, os mais importantes dentre eles, tinham os cabelos e as barbas cobertos por lama vermelha ressecada e portavam horrendos cajados esculpidos em ossadas humanas, com caveiras de bebês que haviam morrido ao nascer ou nos primeiros dias de vida, no topo. Em suma, eram figuras aterrorizantes que impunham medo e respeito ao povo.

Eles desfilaram pelos anéis de postes e se posicionaram em torno do altar central do templo. E então entraram dois rapazes arrastando um vitelo de tenra idade, branco como a neve, e que seria destinado à oblação aos deuses.

Melathor, o líder sacerdotes de Wiltshire, adiantou-se aos demais, gritando alto para que todos o pudessem escutar:

— Estamos aqui reunidos para saudarmos a Dagda, o deus-chefe; a Ossian, o velho; à Brigit, a deusa do amor; à Epona, a deusa dos cavalos; a Belenos, o reluzente e a todos os demais deuses que regem nosso mundo e nossos destinos. E para que recebamos as suas bênçãos neste “Samhain”, devemos oferecer-lhes a tradicional oferenda de sangue...

Naquilo, os dois rapazes arrastaram o vitelo até o altar montado no centro exato dos anéis concêntricos de troncos de carvalho. Com certo custo, deitaram-no de lado e o imobilizaram, amarrando-lhe as patas.

Melathor abaixou-se atrás do altar e quando se ergueu novamente, brandiu acima da cabeça uma pesada clava de madeira, em substituição ao seu cajado de fêmur humano com caveira de bebê.

O povo nem sequer atrevia-se a respirar, ansioso para com o que viria.

O sacerdote urrou e uivou como um lobo faminto, enquanto girava a clava ritual em torno de si mesmo. E então, de repente ele estacou, com a arma segura pelas duas mãos e em posição vertical, acima da cabeça.

O povo preparou-se para o grande momento.

E Melathor arrojou a clava violentamente para baixo, esmagando o crânio do vitelo com um único golpe.

Um ruído seco e solitário foi o único som que se ouviu.

O sangue espirrou no sacerdote, salpicando-lhe o rosto e o peito.

O vitelo morreu instantaneamente, sem sofrimento e sem emitir qualquer som, o que significava, segundo a tradição milenar da tribo, um bom presságio, pois era sinal de que os deuses haviam aceitado o sacrifício.

Satisfeito, Melathor ergueu novamente a clava em direção aos céus, agora rubra de sangue.

— Os deuses nos sorriem! – ele exclamou sorridente. – Eles aprovaram a nossa oferenda, o que significa que teremos um ano de fartura pela frente! Que a doença não nos atingirá! Que as nossas colheitas serão fartas! E que os nossos valorosos guerreiros obterão muitas vitórias perante os nossos inimigos!

O povo comemorou, reiniciando a dança e os cânticos. Alguns gritavam em êxtase. Outros se abraçavam emocionados. E generosas doses do forte licor de mel foram emborcadas, embriagando ainda mais os habitantes do vilarejo, que agora sim tinham motivos de sobra para celebrarem o “Samhain”.

Ignorando a euforia que os cercava em todas as direções, Melathor acenou para Varek, juntando novamente o seu cajado do chão sob o altar, mas sem se desfazer da clava ritual ensanguentada. Ele passara a ostentar um em cada mão.

Ergueu e cruzou-os acima da cabeça. Novo silêncio. Nova letargia. O povo entendeu que finalmente era chegada a hora de seu novo chefe ser empossado.

O guerreiro adentrou o círculo de postes de carvalho, altivo e soberbo, de cabeça erguida, ricamente enfiado em uma túnica de lã de ovelha, e pronto para ser investido na função mais nobre e importante da tribo.

Em um ato simbólico, mas repleto de significado intrínseco, o sacerdote-mor ajoelhou-se diante de Varek, apoiado em seu cajado. Entregou-lhe a clava ensanguentada e beijou seus pés, proclamando-o novo chefe da tribo Wiltshire.

O segundo sacerdote mais velho e importante da tribo avançou e, fazendo uma reverência ao novo chefe, abotoou-lhe o manto de leão que anteriormente pertencera ao pai e mais recentemente ao irmão. O manto sagrado de Nemeton, que identificava os chefes guerreiros da aldeia desde o princípio dos tempos.

Varek aguardou até que o homem terminasse a sua tarefa e igualmente se prostrasse aos seus pés para prosseguir com os trâmites rituais, berrando alto e claro, de forma que todos pudessem escutá-lo:

— Há alguém, dentre vocês, dentre o meu povo, que deseje ocupar o posto de chefe da tribo que neste momento me é concedido por direito de herança? Se houver, rogo para que me desafie agora; e me enfrente em combate... Ou cale-se para sempre!

Silêncio absoluto. Ninguém se manifestou.

Varek sorriu satisfeito.

Passaram-se alguns minutos e Melathor, erguendo-se de pé, apontou para Varek e berrou:

— Saúdem o vosso novo chefe, habitantes de Wiltshire!

Como num passe de mágica, o povo saiu da letargia e o aclamou. Uma nova dança teve início, regada com novas doses de licor de mel e muita cantoria.

Varek sentia-se realizado. Afinal de contas ele conseguira: era agora o novo chefe guerreiro da tribo! E nem mesmo os deuses poderiam negar-lhe a fortuna que acabara de conquistar...

Mas a alegria do assassino recém empossado estava fadada a sucumbir.

Subitamente algo totalmente inesperado aconteceu... E, a partir de então, o mundo de Varek virou de ponta cabeça e tudo mudou.

Um forte e repentino trovão ribombou no céu estrelado, silenciando o povo pela terceira vez.

Naquilo, Varek sentiu uma pontada aguda no peito, ao passo que tudo ao seu redor escureceu por alguns segundos. Quando ele se recuperou, olhou em volta e, perplexo, percebeu que algo estava errado. O mundo, novamente havia mergulhado em um profundo e tenso silêncio; e se apresentava agora, aos seus olhos, opaco e em tons de cinza.

A impressão que Varek tinha, ao perscrutar o santuário e além deste, em todas as direções, era a de que o próprio tempo havia estagnado, pois nada mais se movia. Todos, até onde era capaz de ver, exceto ele próprio, se encontravam paralisados, imobilizados por conta de alguma inexplicável força invisível, como se tivessem sido petrificados ou congelados, transformados em estátuas. Nem as folhas dos enormes carvalhos, nem os pássaros, nem os animais da floresta ou o povo, incluindo-se aí Melathor e os sacerdotes, mostravam sinais de vida. Até a brisa que tradicionalmente embalava as noites da aldeia havia cessado.

Escutou-se então um segundo trovão, ainda mais ensurdecedor do que o anterior, e que fez tremer o solo sob todo o condado. Atraído pelo estrondo, ao levantar o rosto para o céu, Varek vislumbrou um raio de luz deslizar por entre as estrelas, varando as nuvens escuras e despencando em sua direção. O que o fez concluir, assustado e atônito, que os deuses ancestrais de seu povo deviam estar por trás de tudo aquilo. E que, por alguma razão desconhecida, eles agora desciam à Terra, para ter com ele.

Dito e feito. Segundos depois, a conclusão de Varek revelou-se acertada.

E ele não teve tempo de pensar em mais nada.

O relâmpago explodiu bem no centro do altar localizado entre os postes de carvalho, com o vitelo sacrificado e ensanguentado ainda esparramado sobre o mesmo, reduzindo-o a milhares de estilhaços de madeira de todos os tamanhos, mesclados com pedaços de carne chamuscada.

E do clarão que se seguiu à explosão, emergiram cinco seres luminosos.

Eram eles: Dagda, Belenos, Ossian, Epona e Brigit.

6

Varek não conseguia acreditar em seus olhos. Diante dele se encontravam os deuses dos seus ancestrais. E o recém empossado chefe indagou-se sobre as razões deles terem descido da morada celestial ao templo. Teriam vindo para saudá-lo em seu novo cargo? Mas, se assim fosse, seria algo inédito na história de seu povo, uma vez que nunca antes um líder local recebera as bênçãos dos deuses de forma tão pessoal e direta.

Por um breve instante ele ficou em dúvida se aquilo era de fato real ou um mero fruto de sua fértil imaginação.

Sem saber direito como reagir diante de tal situação, ele seguiu o exemplo do resto de seu povo: prostrou-se de joelhos, abaixando a cabeça e congelando todos os movimentos, sustando inclusive a própria respiração.

Um misto de sentimentos dominava-o, variando entre perplexidade, medo e euforia pela dádiva que julgava estar prestes a receber diretamente dos deuses.

De canto de olho, observou que o povo em geral, assim como os sacerdotes e o resto do mundo, permanecia estático e em assombroso silêncio.

Os cinco celestiais se aproximaram de Varek, ao que uma voz diáfana, alta e apavorante ecoou por toda a clareira.

— Varek, filho de Marleth... – Dagda, o maior entre os deuses, pronunciou-se. – Hoje foste aclamado líder da tribo de Wiltshire, contudo não és merecedor de tal honra!

Estupefação e incredulidade tomaram conta do recém empossado. Não era bem isso que ele esperava escutar.

Foi quando um pensamento sombrio percorreu-lhe a mente...

E Varek sentiu um sobressalto ao lembrar-se de Garthall e de como matara o irmão. Fez menção de erguer-se e contestar as palavras do deus, ao que este lhe dirigiu um olhar feroz.

— Detenha-te mortal! Hoje aprenderás que os deuses não são como cães, e por isso não devem ser ignorados. Cometestes um crime hediondo e deves pagar por ele!

— Ou, por acaso, o negas, em nossa presença? Assassinaste friamente o teu irmão, por torpes motivos, impulsionado por mera inveja e ganância, ou não? – Ossian completou.

— E-eu não... – Varek tentou contra argumentar.

— Cala-te vil criatura! – Belenos adiantou-se. – Jamais tentes nos enganar! Ou aprenderás da forma mais dura que existem chicotes maiores e muito mais poderosos que o teu! Aquieta-te ou fulmino-te agora mesmo!

Varek estremeceu, encolhendo-se de pavor. E obedeceu.

Os deuses posicionaram-se em círculo a sua volta; e ele sentiu o poder que exalava de seus avatares etéreos.

— Varek de Wiltshire, filho do valoroso Marleth e irmão do nobre Garthall, aqui estamos para aplicar-te justiça... – declarou Ossian.

— A justiça devida aos fratricidas... – acrescentou Dagda.

— Ou seja, para julgar-te pelo execrável crime cometido contra o teu irmão Garthall... – Belenos se fez escutar.

— Para condenar-te por esse mesmo crime... – complementou Epona.

— E para punir-te por ele! – finalizou Brigit.

7

A punição de Varek se deu após os cinco deuses, autoinvestidos na posição de juízes universais, o considerarem culpado do assassinato do irmão.

Foi Dagda, o deus dos deuses, quem proferiu a sentença condenatória:

— Varek de Wiltshire, irmão que mata irmão não merece perdão! Por isso, por unanimidade, nós condenamos-te a pagar eternamente pelo ato criminoso que cometeste contra o teu irmão Garthall!

Belenos, o radiante, continuou:

— De agora em diante, até o Fim dos Tempos, serás privado de tudo o que tens, inclusive da tua vida e da tua liberdade...

E Epona concluiu:

— De modo que nunca mais serás capaz de fazer mal a outro ser vivo; nem sequer serás capaz de se comunicar com estes...

Varek tremia de medo, arrependido. Porém arrependera-se tarde demais, visto que o mal já tinha sido feito e agora não era mais passível de ser desfeito.

Assim que a sentença foi proferida, Ossian se adiantou e esticou a mão.

No mesmo instante, Varek sentiu o peito comprimir-se como se estivesse sendo esmagado por uma prensa. Ato contínuo, o chão desapareceu sob os seus pés. Uma onda de dor lancinante percorreu-lhe todo o corpo, que agora flutuava no ar, sustentado por uma força invisível e poderosa. Ele tentou escapar e não foi capaz. Tentou gritar por piedade e não conseguiu. Tentou se livrar da pressão no peito e de tamanha dor e igualmente foi incapaz. Sentiu-se empalidecer. O brilho dos olhos desapareceu e o corpo subitamente amoleceu, transformando-se em um pedaço de carne descartável e sem vida, no instante em que ele deu o último suspiro. Era a agonia da morte, ou melhor, de ter a alma violentamente arrancada do seu invólucro carnal sem ter de fato morrido.

De repente, tudo o que Varek fora, simplesmente deixara de ser. Mas, para o seu espanto, ele continuava consciente e lúcido, embora não mais dispusesse de um corpo físico.

A dor no peito desapareceu. Sentiu-se livre e leve como uma pluma. E ele permitiu-se flutuar no vazio por algum tempo, de olhos fechados. Deixou-se levar, aproveitando cada fração de segundo do êxtase que sobrevém à morte da matéria, precedendo o renascimento da alma no mundo astral.

As recordações dos seus pecados, no entanto, logo o fizeram acordar para a sua nova e dura realidade, negando-lhe o direito de usufruir da paz que apenas justos conhecem após a morte.

Confuso, Varek abriu os olhos e perscrutou ao redor.

Os deuses não estavam mais lá. Haviam sumido.

Teria sonhado tudo aquilo?

Bastou um olhar para o próprio corpo sem vida estirado no chão do templo para Varek certificar-se de que não.

Assombrado, ele reparou que não estivera sonhando. E que ainda flutuava livremente, de um lado para o outro, entre os anéis interiores e os exteriores do templo. Entrementes, o santuário agora se encontrava completamente deserto, assim como a clareira em volta. À exceção dele, ninguém mais se encontrava lá. Melathor, os demais sacerdotes, a doce Jenna e o povo, seguindo o exemplo dos deuses, também haviam desaparecido.

— Pela luz de Belenos... – ele murmurou. – Para onde foram todos?

E então, de alguma forma inexplicável, ele compreendeu que se encontrava em um tempo posterior ao seu divino julgamento. Foi apenas neste momento de clarividência, que o atônito Varek percebeu que o mundo a sua volta readquirira as cores originais e que os múltiplos sons da floresta haviam retornado aos seus ouvidos.

Dirigiu-se ao perímetro do último anel de troncos e tentou cruzá-lo. Mas foi bloqueado por uma espécie de campo de força místico. Tentou novamente, no lado oposto do templo. O resultado foi idêntico. Mais uma vez foi impedido de ultrapassar os limites externos do santuário pela barreira energética invisível.

Tentou sair inúmeras outras vezes, em pontos distintos do círculo exterior, mas obteve sempre o mesmo resultado. Exausto, acabou desistindo do intento e resignando-se com a sua malfadada sorte.

E o acabrunhado Varek finalmente compreendeu a real dimensão do seu castigo: ele tornara-se um espírito amaldiçoado... Um fantasma encarcerado no velho templo, condenado a vagar, pelo resto da eternidade, por entre os anéis de troncos de carvalho, remoendo a culpa pelo assassinato do irmão.

8

Para Melathor, os sacerdotes e os demais habitantes da aldeia de Wiltshire isso jamais aconteceu. Eles jamais viram os deuses. Jamais tiveram ciência do julgamento e da condenação de Varek. Para eles, o recém empossado chefe da tribo foi explicitamente rejeitado pelos deuses como tal; e por essa única razão foi acometido de um mal súbito durante os ritos finais de sua posse, falecendo.

Segundo acreditavam, o coração de Varek simplesmente parara, levando-o à morte em pleno “Templo do Céu”. E a pedra-mor do altar do santuário, que se rachara, aparentemente do nada, foi vista como um prenúncio dos deuses para a decadência do lugar. Ambos os fatos maculavam para sempre o caráter sagrado do lugar, de modo que careciam de ser tomadas providências cabíveis. E uma assembléia entre os anciãos e os sacerdotes foi convocada para aquela mesma noite.

As festividades foram abruptamente encerradas. O povo, ainda assustado e sem entender direito o que tinha acontecido, recolheu-se às suas tendas.

Os sacerdotes retiraram o cadáver de Varek do meio do templo maculado e o entregaram às mulheres da tribo, a fim de que elas o preparassem para os ritos funerários que teriam lugar já no dia seguinte.

Enquanto elas o faziam, os anciãos e os sacerdotes se reuniram em volta de uma fogueira, na tenda de Melathor. E, em decisão unânime e irrevogável, eles resolveram que o funeral de Varek deveria ser a última cerimônia a ser realizada no velho templo. Depois disso, o antigo “Templo do Céu” seria abandonado. E, em substituição a ele, um novo santuário deveria ser construído em outro local.

9

Para o espírito de Varek, no entanto, a realidade parecia por demais cruel e dolorosa. Ele ainda se encontrava aturdido com a súbita compreensão de sua nova condição, quando foi submetido a um novo suplício: a mais dura provação de sua existência!

Algo que ele jamais esqueceria. E que, de tão bizarro, o chocaria a tal ponto que ele jamais se recuperaria plenamente...

A dor e o desespero de ser obrigado a presenciar o próprio funeral calaram fundo na atormentada alma do assassino. Foram momentos de extrema agonia que o pobre espírito de Varek jamais seria capaz de apagar de suas memórias.

Ele estava ao lado do tronco de carvalho mais alto do templo quando ouviu um som distante, suave e doce. Olhou na direção da aldeia e vislumbrou o que se poderia chamar de procissão fúnebre. Um jovem sacerdote vinha na dianteira de uma interminável fila de homens e mulheres, entoando um lamento em uma rústica flauta de osso. Logo atrás dele, dois dos mais valentes guerreiros da tribo transportavam uma padiola feita de madeira de salgueiro, com um corpo sobre ela. O seu corpo!

Ninguém precisava confirmar ao fantasma. Ele sabia que era o seu corpo...

Depois da padiola, finalmente vinham os demais sacerdotes e o restante do povo. Conforme os costumes herdados de seus ancestrais, as mulheres da tribo haviam lavado o seu cadáver e o ungido com essências aromáticas e salitre para o seu repouso eterno na “Casa dos Mortos”. O corpo vinha coberto da cabeça aos pés com uma pele de boi cozida, sobre a qual tinham sido colocados montículos de hera e alguns trevos de quatro folhas, para darem sorte ao morto.

O corso fúnebre adentrou o templo pela “Porta do Sol”. E os dois homens depositaram a padiola ao centro deste, onde antes existira o altar.

Melathor chorava e se lamentava, apoiado em seu macabro cajado de ossos humanos. Entretanto, o fazia em silêncio, como ditava a tradição.

O povo, impedido de ultrapassar os limites do templo, permanecia reunido em volta do santuário, igualmente honrando o morto com o seu silêncio.

Varek encarou estarrecido o próprio corpo, esparramado como um animal abatido, sobre a padiola. Era no mínimo estranho, para não dizer surreal, ele ter de assistir ao próprio funeral. Por diversas vezes ele tentou se comunicar com os conterrâneos, com os amigos e com os parentes, mas por alguma obscura razão ninguém era capaz de escutá-lo, mesmo que berrasse a plenos pulmões.

Também não eram capazes de vê-lo. Era como se ele não existisse, como se não estivesse ali...

Após inúmeras tentativas, todas frustradas, ele desistiu.

E resignou-se em sua nova condição.

Ainda estavam no fim da manhã quando as despedidas terminaram.

Nenhuma palavra foi pronunciada. O povo de Wiltshire se despediu dele e foi embora, deixando o corpo sobre a pedra partida do antigo altar, onde deveria permanecer até o crepúsculo solar.

Já o silêncio e os lamentos fúnebres perdurariam até o fim do dia seguinte.

No cair da noite, o corpo foi enfim removido para a “Casa dos Mortos”, que ficava mais ao sul da aldeia, não muito longe dali, escondida sob um bosque de avelaneiras. Varek sabia que o seu corpo seria largado lá para apodrecer e servir de alimento aos vermes, abutres, corvos e animais carnívoros da floresta. Era o costume do seu povo para com os mortos. Eles acreditavam que desta forma se fechava o ciclo da natureza e o espírito do falecido poderia descansar em paz.

Os mesmos dois guerreiros, os que o haviam trazido, ergueram a padiola e se encaminharam para a “Porta do Sol”, com Melathor, o flautista e os demais os seguindo em uma nova procissão.

E então, um por um, os contemporâneos de Varek de Wiltshire deixaram o “Templo do Céu”, para nunca mais retornarem.

10
 
Séculos se passaram. E por muito tempo as únicas companhias do espírito do velho “Templo do Céu” foram o remorso e as dolorosas lembranças, além de um jovem carvalho que floresceu do nada onde antes ficara localizado o altar do santuário abandonado, entre as duas metades da pedra-mor, partida pelo raio dos deuses.

Dos anéis concêntricos de troncos originais, restavam apenas dois ou três troncos isolados que não haviam apodrecido totalmente por conta das ações do tempo e das intempéries climáticas.

O antigo templo já não existia mais.

Em contrapartida, o poder invisível que encarcerava Varek em seu interior permanecia inabalável. O atormentado espírito fazia novas tentativas de deixar o santuário todos os dias, várias vezes entre o alvorecer e o crepúsculo. Todavia sempre tinha o seu intento malogrado pela intransponível barreira mística.

Não fosse o jovem carvalho a lhe fazer companhia, Varek achava que teria enlouquecido. Muitas vezes, durante aqueles séculos de solidão e abandono, ele se pegara conversando com a árvore. Ela foi sua melhor amiga. Desabafava com ela, contava-lhe a sua triste história, pedia perdão pelas suas iniquidades e pelo crime que agora pagava, ria e chorava à sua sombra. E ela nunca retrucava ou o recriminava. Apenas escutava-o, atenciosa e muda.

E assim, vagando solitário e triste por entre a dimensão dos vivos e a dos mortos, tendo apenas o jovem carvalho por fiel companhia, Varek se tornou um atento espectador da História.

Até que chegou a Idade do Bronze...

E, com ela, iniciou-se uma nova era para o antigo monumento de adoração aos deuses.

11

Em algum momento próximo ao ano 3.000 a.C...

Varek não recordava com exatidão quando, mas num determinado dia eles vieram. Os novos habitantes de Wiltshire. E, sem mais nem menos, deram início ao henge – monumento megalítico – que hoje conhecemos.

Impossibilitado de se ausentar do templo, Varek limitou-se a observar cada etapa da construção.

Antes de começarem a obra de fato, os novos construtores decidiram que seria importante limpar o terreno. E fazendo uso de vários homens musculosos, alguns escravos e outros voluntários da própria tribo, eles arrancaram os poucos troncos de carvalho restantes.

No entanto, nenhuma dor foi tão forte para Varek do que ter de assistir, impossibilitado de reagir, por conta de sua condição etérea, ao velho carvalho, seu antigo companheiro e confidente, ser morto, arrancado e levado para longe dali.

Por muito tempo sofreu calado. Mergulhado na mais profunda dor, gerada pela ausência do amigo de tantas conversas. Mas, com o tempo a dor amainou e ele acabou superando a perda, passando a se concentrar, exclusivamente, na fiel observância das obras do novo templo.

No princípio, o santuário não passava de um fosso circular delimitado por uma alta barreira de terra em seu interior e outra mais baixa no círculo exterior. No centro, os escravos de seus construtores escavaram um anel de buracos a fim de se delimitar a posição dos novos pilares que, segundo diziam eles, deveriam estar perfeitamente alinhados com os eventos celestes.

E então chegaram as primeiras pedras... Os colossais blocos eram puxados sobre robustos trenós de madeira, por bois e homens que suavam e sangravam, a fim de trazê-las para dentro do perímetro do novo templo.

Vencida mais essa etapa, com muito sofrimento, e entre erros e acertos, os construtores começaram a erguê-las. Uma de cada vez. Era um trabalho árduo e difícil, que demandava tempo para ser concluído. Certos blocos precisaram de vários dias para ser movidos até os seus respectivos lugares, outro tanto para serem retirados dos trenós e levantados com o uso de cordas puxadas por juntas de bois e homens até deslizarem para dentro dos buracos a eles destinados, a maioria ficando com a base totalmente enterrada.

A cada nova pedra que chegava, mais impressionado o espírito ficava com o tamanho e o peso das mesmas. E quase não acreditou quando a pedra-mãe, ou “Pedra do Sol”, foi deixada no centro do lugar.

A “Hell Stone”, como também é conhecida, necessitou do dobro de bois e de homens e do triplo de dias para ser deslocada até o lugar, retirada do trenó, erguida, ajustada e firmada.

O tempo transcorria normalmente. Distraído com o belo espetáculo de tão maravilhosa obra arquitetônica, o fantasma não o sentia passar... Ele divertia-se tentando adivinhar como os construtores fariam para cumprir a próxima etapa. De que artifícios eles se utilizariam para erguer a próxima pedra. Que surpresas os aguardariam na próxima etapa.

Os anos passavam... Os séculos passavam... E ele não se importava.

Em determinado dia, por volta do ano 2.150 a.C. aconteceu algo notório, excepcional: chegaram do Ocidente algumas pedras azuis.

Varek logo se encantou com a sua beleza, pois nunca antes tinha visto algo parecido. Eram lindas e possuíam um magnetismo especial.

Os blocos azuis, perfeitamente cortados e lapidados, foram erguidos em um duplo círculo. E, para a total perplexidade de Varek, sobre os mesmos foram assentados magníficos lintéis (blocos esculpidos na horizontal), ligando-os uns aos outros.

Ele ficava extasiado de admiração cada vez que os vislumbrava.

Nesta mesma época foi construída uma avenida de acesso, marcada por valas paralelas, alinhadas com o sol nascente do primeiro dia do verão, sendo que também a entrada do templo foi alargada.

Porém, para o desgosto do espírito, em 2.075 a.C., apenas setenta e cinco anos depois de serem erguidas, as suas queridas pedras azuis foram derrubadas, cedendo lugar para novas pedras, de exacerbadas dimensões: os famosos blocos megalíticos, com mais de cinco metros de altura e que pesavam cerca de vinte e cinco toneladas cada. Os mesmos que até hoje predominam na exótica paisagem de Stonehenge.

E a decepção de varek só não foi maior porque em algum momento entre os anos 1.500 a.C. e 1.200 a.C. aproximadamente sessenta das pedras azuis que ele tanto gostava foram restauradas e de novo erguidas em um círculo interno, com outras dezenove velando-as em forma de ferradura, dentro do mesmo anel.

Aproximadamente trinta milhões de horas de exacerbado trabalho, desde a retirada dos postes de carvalho do antigo templo, e o novo santuário finalmente ficou pronto.

Varek sentiu-se feliz, pois acompanhara, passo a passo, todo o processo. E mais ainda porque sabia que aquele seria o seu lar pelo resto da eternidade.

12

Na noite do Solstício de Verão do ano 1.200 a.C...

Todo o povo daquela geração se reunira em volta do “Templo das Pedras Suspensas” para celebrar a “Festa do Imbolc”.

Varek também estava lá. Observando tudo, animado e ansioso.

Naquele ano, a festa seria especial, pois marcaria o início das atividades no novo templo, com a sua consagração ritual.

O espírito não tinha ideia de como a cerimônia seria realizada, mas julgava que deveria ser como na sua época, com o sacrifício ritual de um boi ou vitelo.

A única coisa que não se encaixava nas suas lembranças era a vala de um metro de comprimento, por meio de largura e um de profundidade, escavada a dois passos das pedras azuis empilhadas que compunham o altar central. Varek não conseguia sequer imaginar a que ela se destinava.

A noite da consagração mostrava-se propícia, pois fazia calor e não havia nuvens no céu.

A cerimônia teve início, quando uma fila de sacerdotes despontou ao longe, na avenida de acesso ao templo. Eles caminhavam lentamente entoando hinos e cânticos, que o povo inteiro conhecia e acompanhava. Alguns portavam flautas e outros instrumentos musicais que o espírito de Varek jamais tinha visto e, no entanto, produziam belas notas.

As vestimentas longas da população e dos sacerdotes chamaram a atenção de Varek, pois não condiziam o calor que fazia. Eram peles e túnicas multicores, a maioria com capuzes que ocultavam as faces de seus donos, e muitas das quais ele não era capaz de dizer a qual animal haviam pertencido.

Os sacerdotes adentraram os anéis de pedra pela nova “Porta do Sol” e se posicionaram em meia lua em volta do altar e retiraram os capuzes.

Varek percebeu que alguns dentre eles eram mulheres.

Mulheres agora entravam e saíam livremente do templo?

Mas estarrecido de verdade, ele ficou quando viu que o líder dos sacerdotes igualmente era uma mulher!

Uma feiticeira que trajava uma capa inteiriça de pele de texugo, com um xale de lã de carneiro cobrindo-lhe a escassa cabeleira branca.

Julgou tratar-se de uma bruxa, pois aparentava ser muito velha. Mais velha do qualquer homem ou mulher alguma vez fora. Tão velha que era impossível calcular a sua idade.

A um sinal da anciã, um sacerdote, desta vez do sexo masculino, adentrou o círculo pétreo arrastando pela mão, o que ele julgou ser um anão. Não tinha certeza, pois o baixinho estava encapuzado. Na outra mão o homem portava um amedrontador machado de duplas lâminas com as mesmas, talhadas em pedra vulcânica, extremamente afiadas.

Varek fitou a arma, depois o anão; e teve um mau pressentimento. Porém, ele resolveu não tirar conclusões precipitadas.

Ao pararem na frente da feiticeira, a velha esticou o braço e deitou o capuz do anão, revelando o rosto do pequenino.

Varek só não desmaiou de susto porque fantasmas não desmaiam.

O anão não era um anão, e sim uma criança!

Um garotinho de tenra idade que, pelos sinais com que os sacerdotes com ele se comunicavam e vice-versa, devia ser surdo-mudo. A bruxa o fez beber de uma poção esverdeada, que devia ser algum tipo de poção dos sonhos, e o deitou sobre o altar, de barriga para cima.

Varek olhou novamente para o machado e o seu olhar parou no buraco que lhe chamara a atenção instantes atrás.

Então ele compreendeu...

A criança, por não ser normal, seria oferecida aos deuses, de modo que, ao ser sacrificado, o garotinho se tornaria um mensageiro dos deuses e guardião do templo que estava prestes a consagrar com o seu sangue.

Ele próprio era um fratricida, assassino de irmãos. Mas há muito tempo vinha pagando por seu crime, de modo que adquirira consciência do quanto era errado matar seus semelhantes. E se era errado matar um adulto, o que dizer da monstruosidade de se matar uma criança inocente? Não. Ele não podia permitir que aqueles loucos prosseguissem e concluíssem o ritual.

— Não deite aí! – Varek gritou para o garoto, antevendo o destino cruel que lhe era reservado.

Nada. Ninguém o escutou. Frustrado, virou-se para os sacerdotes.

— Parem! Não façam isso, seus assassinos de crianças, seus “molots”! [1]

Novamente ninguém o escutou. E o ritual prosseguiu.

O sujeito do machado se aproximou do altar e sem pronunciar palavra, se preparou para cumprir a sua obrigação, erguendo a arma com ambas as mãos. O menino parecia não se importar com o que estava ocorrendo, ou simplesmente não atinava para o que lhe aconteceria quando o machado descesse.

O povo todo estava em silêncio. Um silêncio ansioso. Um silêncio nefando, desejoso de sangue e de morte.

Varek desesperou-se e jogou-se contra o assassino, passando através deste e saindo do lado oposto do altar. Fato que só serviu para aumentar a sua agonia.

A feiticeira grunhiu algumas frases em uma língua estranha, que o espírito não conhecia. E, com um aceno de cabeça, deu o sinal verde.

O carrasco desferiu o golpe. Ele ainda tentou bloquear o avanço da lâmina de pedra, mas foi totalmente incapaz, visto que a mesma atravessou a sua mão e prosseguiu em seu curso até encontrar o objetivo. O sangue espirrou para todo o lado, enquanto a criança, com o crânio aberto ao meio, morria sem soltar sequer um som.

Varek não se recordava mais do que acontecera depois. Só que aquela noite macabra inaugurara uma fase negra na história de Stonehenge.

A hedionda fase dos sacrifícios humanos.

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Em algum momento, por volta do ano 1.100 a.C...

— Até quando isso vai durar? Até quando vão insultar os deuses com essas mortes? – o espírito de Varek se perguntava a cada nova consagração sacrificial realizada no santuário que ele jocosamente apelidara de “Templo da Morte”.

Cem anos haviam transcorrido desde a fatídica noite do primeiro sacrifício.

O lugar inteiro cheirava a sangue. E ele indagava-se, saudoso de seu velho companheiro, o carvalho com quem podia desabafar:

— Quando esses malditos assassinos vão se dar conta de que os deuses não aprovam tais atos hediondos? Que eles não desejam, nem nunca desejaram, ser alimentados com sangue? E que a terra sob este templo não pode e nem deve ser tingida de vermelho toda vez que uma cerimônia, de origem religiosa ou não, é realizada neste lugar?

De tanto implorar aos deuses para que fizessem cessar aquelas atrocidades, um dia Varek teve suas preces atendidas.

De repente, sem explicação alguma, ninguém mais apareceu.

Os anos passaram.

E o templo novamente foi abandonado.

Era o fim do “Templo da Morte” e da era dos sacrifícios...

Com o passar dos séculos, os anéis de pedra foram se deteriorando. Alguns caíram e outros racharam, sobrando apenas uns poucos de pé.

Varek presenciou, com o coração apertado, a queda de cada lintel e de cada bloco vertical, assim como o surgimento de cada rachadura nas pedras que se mantinham firmes. E acompanhou o crescimento da vegetação por todo o lugar.

Mas estava novamente sozinho e em paz.

A sua felicidade só não era completa por três fatores: manter-se prisioneiro das agora ruínas do antigo santuário, pelo remorso que ainda remoía e por não ter mais o carvalho amigo para conversar e desabafar.

14

Em algum momento, subsequente ao ano 300 a.C...   

A paz de Varek foi novamente ameaçada pela chegada de um novo povo e a retomada das cerimônias no templo.

Mas a ameaça não passou disso, pois os Druidas, como eram conhecidos os novos sacerdotes do “Povo Celta”, logo o conquistaram pelo simples fato de seus rituais serem de cunhos pacíficos e de louvor à natureza.

E, com eles, iniciou-se a fase do “Templo da Vida”.

As ruínas, contudo, nunca mais foram restauradas.

Lá ele assistiu à ordenação de um Mago que mais tarde ficaria famoso por utilizar um encantamento em uma espada mística encravada em uma rocha, de modo que somente um jovem rei conseguiria retirá-la. Acompanhou a passagem de grandiosos exércitos. Assistiu a ferozes batalhas. Presenciou assinaturas de tratados de paz e armistícios. Comemorou os nascimentos e chorou as perdas de grandes heróis. Contemplou o amor de homens e mulheres. Testemunhou dias de sol e violentas tempestades. Encantou-se com os rituais místicos dos druidas de adoração à vida e à natureza... Enfim, tornou-se um prudente observador da evolução humana e um profundo admirador das tradições celtas.

Desde então, o espírito presenciou coroações de reis, casamentos, ritos de passagem, funerais, comemorações de solstícios, rituais de colheitas e de cunho astrológico-astronômico nas ruínas que se transformaram em sua casa eterna.

Varek se lembrava nitidamente de cada um deles.

15

De volta ao presente...

Os primeiros raios do sol atingiram Stonehenge, banhando com a sua luz e o seu calor as “Hanging Stones”; e juntando-se a elas em sua eterna dança de gigantes. Era mais uma linda manhã de primavera que despontava na desolada planície de Salisbury, ao passo que outra lacônica noite de intensas recordações se findava.

Com o alvorecer do novo dia, as excursões logo começariam a chegar. E o espírito de súbito se viu retirado de seus devaneios e lembranças, concluindo entristecido que, de sua época até agora, tudo havia mudado.

Wiltshire deixara de ser o nome de uma pequena tribo guerreira da Idade do Bronze para se tornar o epíteto de todo o condado. A antiga aldeia progredira e se transformara no que hoje conhecemos como “Durrington Walls”. A enorme barreira em volta do “Templo da Vida” atualmente não passava de uma apagada sombra no chão. E Stonehenge, propriamente dito, já não era mais do que um aglomerado de ruínas megalíticas.

A maioria dos visitantes, por não conhecer a sua magnífica e controversa história, não lhe creditava o devido valor. Muitos ficavam desapontados com o estado deplorável em que o monumento se encontrava, outros consideravam as ruínas assustadoras e enigmáticas. Já os mais esclarecidos, as tinham como uma maravilhosa associação da ousada arquitetura megalítica ancestral com os mais recônditos anseios da humanidade de se comunicar com os seus deuses.

Mas ele, e apenas ele, Varek de Wiltshire, conhecia a verdadeira origem e a história daquele fantástico monumento. E, ao que tudo indicava, apenas ele, por conta de sua condição de eterno prisioneiro das ruínas, seria testemunha do que o futuro ainda reservava para aquele fascinante lugar.

Afinal de contas, até o Fim dos Tempos, Varek de Wiltshire estava fadado a conviver com o irreversível fardo de ser...

“O Espírito de Stonehenge”.




[1] Molot = expressão que significa “monstro” na língua natal de Varek.

contos de terror


Márson Alquati

Biografia

Márson Alquati – Gaúcho, graduado em História pela Universidade Anhanguera, profissionalmente atua como Técnico Tributário da Receita Estadual do Estado do RS e, nas horas vagas, se diverte escrevendo histórias de literatura fantástica. Possui contos publicados em diversas antologias nacionais.
Autor dos consagrados romances:
A GUERRA DOS ANJOS [Giz/2009]
SOB O DOMÍNIO DAS SOMBRAS [Giz/2010]
O DESTINO DOS ESCOLHIDOS [Giz/2011]
“SANGUE DE ADÃO” [Literata/2014]

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Um comentário:

  1. Márson!
    Quanta angústia senti por Verek e sua sina. Achei que, ao final, ele seria perdoado. E caminhar pela história com ele foi muito bom.
    Parabéns!

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