Conto - A Droga da Felicidade.






- Me conta, como é que é? – pediu Max.
- Pode Crer em mim! – respondeu Ramalho – É a droga da felicidade! Coisa fina, recebi dos bolivianos esta semana! É revolucionário cara! Veio de uma região inexplorada dos Andes em Machu Picchu!

Max sabia que Machu Picchu não ficava na Bolívia, mas confiava que os conhecimentos de Ramalho sobre droga superavam os geográficos.
- Mas conta como é o efeito, velho?
Ramalho mostrou a arcada dentária amarelada por anos de nicotina. Tinha 42 anos e uma cabeleira crespa e loura, com fios brancos, amarrada em um rabo de cavalo mal feito, dando ao traficante uma aparência de um leão velho. O rosto possuía sulcos causados pela erosão de décadas de ressaca e os olhos outrora verdes se desfiguraram, a parte branca ganhou tantas veias ressaltadas em vermelho que lembrava a bandeira do Fluminense Futebol Clube.
Não, não contaria para o freguês sobre os efeitos se isso fosse estragar a surpresa e parte do prazer da droga. Apenas recebeu o dinheiro embolado com uma piscada de olhos e se foi sorrindo para vida com intimidade.
O ano era 1995. Max tinha 18 anos e 63 quilos. Era magrelo e sardento. Assim como os olhos, os cabelos lisos eram muito negros e contornavam o rosto redondo escorrendo pelas orelhas. Não dava sorte com as mulheres. Menos pela aparência, mais pela ausência de vida social. O garoto vivia sozinho com a mãe, uma professora aposentada. O custo de vida em Juiz de Fora era baixo, o que dava para manter uma vida relativamente tranqüila, embora com muitas privações. Perdia muito tempo interagindo com o computador e o super-nintendo, pois estes não demandavam a complexidade de um relacionamento com um ser humano.
Havia acabado de fechar a farmácia de manipulação onde trabalhava operando um 486 onde fazia rótulos e etiquetas de remédios no Corel5. Eram 19h e a claridade do céu já havia deixado a cidade. As luzes da Rua Halfeld amarelavam o cansaço da sexta-feira. Teria que se apressar para lanchar e chegar a tempo da primeira aula do cursinho pré-vestibular. Ao invés de lanchar, Max voltou ao trabalho onde poderia se drogar sem ser perturbado por outros elementos da raça humana.
Ao chegar à porta, percebeu sem os óculos, um borrão branco estacionado em seu caminho. Teve que tirar o pesado fundo de garrafa do bolso da camisa xadrez e colocar para ver Carla sorrindo para ele.
- Que sorte você estar aqui! Eu esqueci minha carteira na loja e já estava me convencendo que dava para chegar a pé em casa.
Ela ainda usava o jaleco branco da farmácia e o batom de uma cor que Max entendia como laranja; passado tão descuidadamente pelos lábios grossos que deixava a impressão de que comera algo gorduroso. Os olhos eram negros e pequenos. Havia sardas e espinhas, mais do que gostaria. O cabelo era louro pintado por cima de uma raiz castanho claro. Nada combinava e, ainda assim, Carla era linda. Era da mesma altura de Max, magra em tudo, menos no traseiro, e com um abdome impecavelmente liso e um cheiro de morango no hálito.
Ele escondeu a decepção da amiga empata-droga. Abriu a porta e esperou que ela pegasse a carteira. Ganhou um beijo de gratidão no rosto.
- Você vai sair no final de semana – indagou a menina de maneira casual.
- Não sei – desconversou pensando na droga.
- Segunda-feira, traz as fotos!
- O que?
- As fotos que a gente tirou na cachoeira...
Tinham saído há cerca de um mês. Todos que trabalhavam na farmácia. Passaram o dia inteiro em uma cachoeira numa cidade vizinha. Tirou fotos e mais fotos das amigas de biquíni com finalidades onanisticas. Gastara 24 reais na revelação.
- Vou trazer – Pensou se não estavam sujas de sêmem.
Ele poderia dizer a Carla que estava com vontade de ir ao banheiro ou mesmo que queria ficar de bobeira no computador, mas não pensou nisso. Tinha certeza que até a Lua, que se espremia no alto entre os prédios, fazia isso apenas para conseguir uma posição melhor para julgar seus pecados.
Foi então em direção a cursinho com passos apressados. Chegou ao prédio e a aula já havia começado. O professor de história falava sobre a Ditadura Militar destacando as formas de tortura usadas para impedir a “ameaça comunista”. Prestou atenção, fez anotações e questionou algumas informações. A mochila tinha pelo menos dez quilos de cadernos e apostilas. A curiosidade pela nova droga, entretanto, formigava em sua mente com intensidade, atrapalhando o foco nos estudos.
Resolveu que deveria experimentar uma pílula na hora do intervalo e tão logo o sinal tocou, correu para o banheiro e se trancou sob o vaso sanitário a espera de um orgasmo químico que não veio. Esperou dez minutos e tudo o que conseguiu foi decorar todas as frases escritas na porta a sua frente. Decepcionado, escreveu também suas próprias poesias e resolveu assistir a aula. Max distraiu-se uns segundos olhando suas companheiras de sala. O cursinho parecia ser uma fábrica de mulheres bonitas. Em pleno verão, a sala era um festival de coxas de fora e seios quase a mostra! Tinha-se a impressão de que alguém proibira as moças de usar sutiã. Podia sentir o estrogênio no ar e isso o deixava deprimido. Podia ver, mas não podia tocar. Como sempre, tentou transformar a frustração em um impulso para estudar ainda mais. Um dia, quando tivesse dinheiro o suficiente, compraria um carro, teria uma casa com piscina, seria chamado para as festas e...
- Max!
Um dedo o cutucou por trás trazendo-o de volta a realidade. Ele se virou esperando ver a cara do professor pedindo que ele prestasse atenção em algum detalhe importante na vida de Getúlio Vargas. Mas era Carol, uma das meninas que certamente poderia disputar o título de mais gostosa da sala. Era morena, tinha um corpo esguio, o qual ela sabia vestir com bom gosto. Bermuda branca, curta, com um cinto preto. Comportada para os padrões brasileiros. Blusa roxa de algodão, com botões brancos. Os seios não eram enormes, mas pareciam querer explodir lá dentro. Cabelos de índia cortados abaixo da orelha. Pele cor de jambo apetitoso. Dava fome só de olhar!
- Max, preciso de um favor seu. - disse com uma voz doce, porém com extrema seriedade - Poderia me ajudar ali fora?
Max acenou com a cabeça afirmativamente. Não seria cavalheiro se perguntasse do que se tratava. Apenas se levantou da carteira e acompanhou a menina até o corredor do cursinho. Quando chegou próximo ao banheiro, menina tapou a boca de Max com os lábios. Um beijo ardente, de paixão genuína e verdadeira. Como se ela esperasse a vida inteira para beijá-lo. Dois minutos depois, Max estava sem ar. Ela se afastou para deixá-lo respirar. Depois levou-o pela mão para dentro do banheiro onde desabotoou a blusa liberando os seios. Finalmente ela falou:
- Preciso que faça amor comigo, Max!
Foi a vez de Max não responder. Ao penetrar a menina, pareceu escutar toda uma orquestra sinfônica. Uma música celestial! John Willians, Jerry Goldsmith, Mozart, Bach, Beethoven, regiam uma filarmônica de criptonianos bombados acompanhados de vozes de Plácido Domingos, Pavarotti, Bocelli, Paul, Jorge, Ringo e Bruce Dickson. Por cima dele, Carol se contorcia, gemia, sempre no ritmo da música. A trilha sonora sob a qual Deus criara o universo. A pele morena reluzindo com o suor. Faziam amor em meio turbilhão de prazer. Giravam em torno daquele rodamoinho galático. Havia estrelas cadentes lascivas, vulcões eróticos e super-novas libidinosas. Max era o imperador-deus do sexo. Sabia o que fazer, quando fazer e executava com muito vigor. Tudo para deixar Carol excitada e alucinada de prazer.
- Você faz tão gostoso, Max! - dizia ela com uma voz de sereia capaz de atrair qualquer marinheiro para o fundo do oceano.
 Max cerrou as pálpebras, mergulhando nesse outro mundo até então desconhecido. Tudo que sentia eram os seios presos entre seus dedos e o cheiro provocante da menina. Uma mistura de suor, sexo, alegria e morango. Quando abriu os olhos, estava novamente na sala de aula. Seu corpo parecia ainda estar eletrizado, a respiração ofegante. Olhou para os lados confuso. Sentiu seu corpo suado, cansado e satisfeito. Estavam todos os alunos prestando a atenção na aula. Como viera parar ali?
“Essa não! Teria sido um sonho?” pensou chateado. Mas este foi realista de mais! Bom nem tanto assim. Mas ele sentiu como se fosse real. Desconcertado, levantou-se para ir ao banheiro lavar o rosto. Ao entrar, se perguntou se estava fazendo isso pela segunda ou pela terceira vez hoje.
- Por isso que a chamam de droga da felicidade! - disse para sua própria imagem refletida no espelho do banheiro.
Quando saiu Carol passou por ele. Também vinha do banheiro, também estava suada, os cabelos embaraçados. Estava confusa, mas estava feliz. Uma felicidade exausta de final de campeonato.  Olhou com satisfação para Max e sorriu maliciosamente. Max quis falar com ela, mas a menina parecia fora de si. Continuou cambaleando para dentro da sala de aula e fechou a porta.
Extasiado, Max resolveu ir para casa. Queria ligar para o amigo Ramalho.  A cabeça formigava de perguntas. O que era aquilo? Como funciona? Tinha mais? O que realmente aconteceu?
Meia hora de caminhada do Centro e estava em casa, no Alto dos Passos. Chegou em casa e foi direto para o quarto, onde tomou outra pílula e tratou de achar o álbum de retratos com as fotos de Carla de biquíni.
Um chamado da mãe interrompeu sua busca entre as caixas entulhadas do guarda-roupa.
- Filho, corre aqui na cozinha! Tem uma barata enorme debaixo da pia!
Max correu para a cozinha, tinha medo de baratas, mas sua mãe tinha muito mais. O rádio estava ligado, como sempre. Sua mãe passou por ele correndo com um sorriso amarelo. O medo era tão absurdo que não restava mais além de rir do próprio ridículo.
- Esse menino que morreu não era amigo seu? – perguntou enquanto se trancava na sala.
- Quem mãe? O rádio não mostra foto, uai! – Esbravejou enquanto pegava um chinelo e olhava embaixo da pia.
- Josias Tibúrcio – falou a mãe. – O locutor disse que ele era conhecido por Ramalho. Morreu hoje a noite, de overdose no meio da rua. Deu a maior confusão!
O coração de Max acelerou. A droga era perigosa? Ramalho tomava tanta coisa que poderia ter dado um revertério geral. Pane no sistema. Poderia não ser só a droga. Poderia ser um monte de coisa. Poderia haver uma explicação que fizesse seu coração bater mais devagar, mas ele não encontrou nenhuma. Ficou nervoso como se houvesse uma arma apontada para sua cabeça. O que fazer? O que fazer?
As mãos apertaram com força o chinelo de borracha. Mataria a barata e depois pensaria no que fazer. De um pequeno ralo, começaram a sair dezenas de baratas. Max olhou em volta a procura do inseticida. Quando voltou a olhar o ralo, ouviu um estrondo.
- Mãe! – gritou.
O ralo havia explodido e milhares de baratas voavam enfurecidas para cima dele. Em menos de um segundo seu corpo estava coberto pelos insetos nojentos, o cheiro de bueiro invadiu suas narinas causando náuseas inimagináveis. Era como se formassem um líquido monstruoso, as baratas transbordaram e encheram a cozinha até o teto. Max agora estava se afogando em um tsunami blattario. Em menos de cinco segundos começaram a entrar por sua boca, seu nariz, seu anus. Sentia lhe devorarem por dentro, as mordidas dilacerando a carne, como se fossem piranhas fedorentas. Cada mordida era pequena, mas eram milhares, milhões delas. Não conseguia se mexer, muito menos respirar. Não havia mais mundo, nem Deus, nem o Diabo, apenas as mordidas por fora e por dentro do corpo. A morte veio lenta e dolorosa.
Quando a mãe chegou à cozinha, Max estava caído numa poça de sangue e vômito. Não havia nenhum sinal de baratas. Mais tarde o médico diria que a morte fora causada por algum tipo de alucinação que levou Max a ter um ataque cardíaco fulminante.




Clinton Davisson


Biografia: Clinton Davisson é formado em jornalismo pela UFJF e tem pós-graduação em Cultura Africana e Indígena pela FeMASS. Além de jornalista, é músico, roteirista e cartunista.
Em 1999, lançou o romance “Fáfia – A Copa do Mundo de 2022” juntando ficção científica e futebol com boas doses de humor. Em 2000, escreveu a novela “Hegemonia” que ficaria com o 3º lugar no prêmio Nautilus da revista Scifi News Contos. O conto se transformaria, sete anos depois, em “Hegemonia – O Herdeiro de Basten”, o primeiro da saga que mostra a história de uma civilização vivendo sob uma Esfera Dyson.
Em 2011 lançou a noveleta “Hegemonia – A Esfera Dourada”, na coletânea “Space Opera”, da Editora Draco, que conta eventos anteriores ao Herdeiro de Basten.
Atualmente é coordenador do projeto “Pensando o futuro de Macaé” de incentivo a leitura em salas de aulas nas escolas da Rede Municipal de Educação de Macaé, no norte do Estado do Rio de Janeiro. O projeto já ganhou o prêmio “Mary Shelley” de incentivo a leitura de ficção científica e o Prêmio de Responsabilidade Sócio-Ambiental da Bacia de Campos. 







2 comentários:

  1. Ótimo conto – e um bocado assustador se pensarmos bem. :)

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  2. Ótimo conto!\o/
    Não consegui respirar!
    Deixou um ar de dom casmurro "rolou o não rolou? Foi fantasia mesmo a cena no banheiro?"
    Parabéns mesmo

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