Conto - O Porão do Diabo.





Assim que o ponteiro maior estalou no número doze do relógio, Vera abriu os olhos. Três da madrugada. Hora de o demônio despontar.

Durante alguns anos aquela aparição espectral nada dizia, apenas a contemplava por alguns segundos desaparecendo no ar no ápice de seu desespero.
Vera beirou à loucura durante muito tempo, mas acabou se acostumando com a pontual visita que vêm ocorrendo desde 1997.
É um jovem de batina com olhar triste e intrigante. Já há muito olhava para ele sem medo, mas com tristeza. Se pelo menos ele falasse com ela, se a contasse o motivo de suas visitas ou dissesse como ela poderia ajudar, o faria com prazer. Deixar de mergulhar no ímpeto da amargura que aqueles olhos opacos a transmitiam, seria um alívio para a sua alma.
Vera sentou-se na cama sonolenta e logo localizou a assombração num canto do quarto.
--- Oi. - Ela disse bocejando.
Ele se aproximou e num sobressalto Vera caiu sobre o carpete duro. Ele nunca havia se movido antes. Aparecia e sumia sempre no mesmo lugar.
Gesticulando como se pedisse desculpas pelo susto, o fantasma começou a falar.
--- Preciso te contar sobre a maldição de Ashville.
--- O que? – Ela perguntou confusa enquanto retornava trêmula para a cama.
--- A maldição de Ashville, no Condado de Pickaway, já ouviu falar?
--- Não, mas fale, me conte. – Ela pediu ansiosa e deslumbrada por finalmente ouvir a voz da aparição.
--- Bem, eu nasci, cresci e morri nesta vila localizada no estado de Ohio. O fato é que depois da minha morte, descobri que todas as almas que lá desencarnaram por meios sobrenaturais, estão presas no porão do diabo e a única maneira de libertá-las é encontrando a chave dourada que jaz á beira de um afluente do Rio Ohio onde o próprio capeta a enterrou.
--- Sei, e você espera que eu vá até lá e encontre a tal chave para libertar as pobres almas? E é por isso que tem me visitado todos esses anos?
Ele inclinou levemente a cabeça num gesto afirmativo.
--- E por que eu tenho que fazer isso?
--- Você é minha descendente e além do mais eu, como tendo sido o último padre daquele condado me sinto responsável por não ter conseguido combater o mal que lá habita.
--- Como assim descendente de um padre? Eu? Não estou entendendo.
--- É, eu... – Ele pigarreou como se possuísse um corpo. – Bem, foram poucas as missas que consegui realizar naquele local maldito e numa dessas tentativas, o teto da igreja desabou atingindo muitas pessoas. Na ocasião, eu tive apenas uma leve contusão no braço e no dia seguinte saí para visitar os fiéis que haviam sofrido ferimentos mais graves do que eu.
Quando cheguei a casa do xerife para visitar a sua esposa ferida, fiquei surpreso ao encontrar a porta entreaberta. Chamei inúmeras vezes e como ninguém respondeu, decidi entrar.
Foi então que a vi dormindo. Linda na camisola transparente que evidenciava o corpo nu e perfeito debaixo do pano fino. Naquele momento eu reprimi todo o desejo que subia fervilhante e se apossava de cada centímetro da minha carne em chamas.
Eu ia me retirar e já tinha virado as costas quando ouvi sua doce voz a me chamar.
Como se pressentisse o meu anseio, ela nem se deu ao trabalho de cobrir-se quando eu me voltei, e mesmo com os arranhões causados pelo desabamento do teto, ela estava linda e irresistível. Não pude me conter diante de toda aquela insinuação libidinosa e o ato inevitável foi então consumado. Nove meses depois ela deu à luz a uma menina do meu próprio sangue, mas infelizmente não cheguei a conhecê-la, pois já havia sido assassinado quando a pequena Mary veio ao mundo. – Ele baixou o olhar com tristeza e explicou após um suspiro:
--- É por isso que digo que você é minha descendente.
--- E como foi que você morreu? – Perguntou fascinada e já livre da tremedeira.
--- É constrangedor. Não quero contar isso agora. Preciso saber se vai ajudar a recuperar a chave e libertar as almas do porão do diabo.
Vera pensou por alguns instantes e ocorreu-lhe de repente uma outra questão:
--- Por que me diz isso somente agora? Por que não falou antes? Depois de todos estes anos você...
--- Estava reunindo forças para falar. – Ele interrompeu. - A comunicação entre os mundos não é tão simples assim. Por favor, diga que vai ajudar.
Ela percebeu a urgência de seu apelo e vislumbrou o espírito enfraquecendo transparente. Traços borrados e ondulados misturaram-se por completo com a escuridão do seu quarto antes mesmo que pudesse responder.
De qualquer maneira, ela não tinha uma resposta. Não sabia ao certo o que fazer. Inúmeras questões abominavam-lhe a mente, mas a melancolia atormentada daquela alma em desespero, a faria considerar a hipótese de ajudar.
Vera entregou-se ao sono e teve um dia agitado. Mal podia esperar para reencontrar seu antepassado e dar-lhe a resposta que ele tanto almejava.
É ela ajudaria sim. Não poderia conviver com o remorso de ter se negado a fazer algo tão importante. Além do mais, o fantasma a deixaria em paz depois disso, não deixaria?
Às três da manhã ele apareceu. Vera ainda estava acordada contando os minutos para a sua chegada.
--- Eu vou te ajudar. Me diz o que fazer. – Ela disse entusiasmada assim que o viu, mas ele logo se transformou numa névoa sem densidade e desapareceu na penumbra esboçando um sorriso.
Estava fraco, ela imaginou. Pelo menos ele ouvira a sua resposta, disso tinha certeza.
Na noite seguinte a mesma coisa aconteceu. A energia que o fantasma acumulara não era suficiente para que conversasse.
Céus, teria Vera que esperar mais alguns anos antes que o padre pudesse falar de novo?
Decidiu não esperar nem mais um minuto e sim agir. Pesquisou tudo o que pôde a respeito de Ashville em Ohio, fez suas malas e dirigiu-se para lá.
Após um vôo turbulento, pegou um taxi no aeroporto e deu as instruções ao motorista. Este a deixou no único bar que havia no Condado de Pickaway.
Vera entrou, pediu uma bebida refrescante e perguntou como faria para chegar em Ashville. Imediatamente todos os olhares se voltaram para ela espantados. Hesitante e tartamudeando o barman respondeu roçando a barba rala com as pontas dos dedos:
--- Olha, eu mesmo posso levá-la até a entrada da vila, mas terá que seguir a pé após o portal, pois lá eu não entro.
--- Mas eu achei que Ashville fosse aqui por perto. – Ela falou encabulada.
--- Sim, não é tão longe, mas é preciso ir de carro. Não é aconselhável caminhar por aqui.
--- E por que não?
--- É uma história muito longa que começou em 1845...
--- Loonigan! – Alguém do bar advertiu.
--- Bem moça, nós não falamos sobre isso por aqui. Tem certeza de que quer ir até lá?
--- Sim. Poderia me levar?
Todos se entreolharam e o homem insistiu:
--- Posso sim, mas tem certeza mesmo?
Ela meneou a cabeça e então o homem corpulento gentilmente a cedeu uma carona até a entrada da vila.
--- Boa sorte! – ele disse assim que Vera saltou do carro velho.
“Pobre moça”, pensou. “Não sabe o que está fazendo”.
Uma neblina espessa bloqueava a visão da extensão da rua em que Vera caminhava. A placa enferrujada a saudou com boas vindas: Welcome to Ashville e logo abaixo da placa o desenho de um cowboy sem rosto segurava um pergaminho apagado onde só era possível reconhecer as palavras free e pray que provavelmente faziam parte de uma frase já há muito expungida do velho mural desgastado pelo tempo.
Ela se embrenhou na névoa densa e por mais de dez minutos caminhou sem enxergar um palmo adiante naquele mar esbranquiçado de partículas fantasmagóricas.
Prestes a ter um colapso nervoso notou que a névoa se desfazia evidenciando as casas simples da cidade.
--- Graças a Deus! – Falou aliviada.
A impressão que teve foi de ter saído de uma máquina do tempo. As residências construídas em madeira roliça sustentadas por vigas irregulares que debruçavam numa base de pedras a levou por um segundo ao núcleo de um filme de velho oeste.
Vera ergueu as sobrancelhas pasmas ao observar com atenção as pessoas indo e vindo com seus trajes antiquados e utilizando carroças como meio de transporte.
Senhoras com a pele castigada pelo sol retiravam baldes d’água de um poço e caminhavam com dificuldade sustentando o peso do recipiente sobre seus ombros.
Vera se aproximou daquelas mulheres que ao perceberem a sua presença deixaram escapar gemidos de pavor. Algumas delas derrubaram os seus baldes e correram assustadas para as suas casas batendo as portas e janelas com violência e pressa.
--- Espere! – Ela gritou alcançando uma das senhoras que também se afastava.
--- Eu só quero uma informação. – Disse com a voz embargada.
--- Busque sua informação no Saloon. O velho Billy talvez possa te ajudar e jamais dirija novamente suas palavras às mulheres de respeito dessa cidade, ouviu bem? – A velha se afastou com uma careta de repulsa e entrou na casinha batendo a porta com hostilidade.
Vera olhou ao redor. Localizou o Saloon e caminhou até lá enquanto olhares curiosos de cavalheiros perdidos no tempo a acompanhavam.
Empurrou vacilante uma das bandas da porta vaivém e o ranger das molas atraiu a atenção de todos os bêbados que escapavam da rotina entre copos de cachaça e jogos de carteado.
--- Se quer um emprego, ele é seu! – Disse o velho corcunda que enxugava um copo num pano imundo atrás do balcão.
--- Não, eu só quero uma informação.
Vera percebeu que o decote estava muito exagerado e talvez por isso as mulheres haviam se afastado dela. Os homens também a confundiram com uma prostituta, que absurdo!
Juntando a abertura da blusa que mostrava o colo nu, ela se aproximou e foi ter com o velho Billy ignorando os olhares afoitos dos bêbados que a devoravam sem disfarçar.
--- Qual é a informação de deseja, madame?
--- Parece loucura o que vou te dizer, mas vim de muito longe para resolver um assunto sobre maldições que envolve esta vila.
--- Sei. – Billy disse após dar uma irônica gargalhada. – Continue.
O ranger da porta desviou o seu olhar.
--- Meu Deus! – Vera exclamou chocada.
--- Meu Deus, não. Nosso Deus! Só ele para nos ajudar a viver nesse lugar. – Disse o padre que acabara de entrar e já ia se sentando na roda de carteado.
Vera ficou estática por mais de cinco minutos. Com o olhar entorpecido ela analisou aquele ser, agora em carne e osso. O fantasma de batina que invadiu o seu quarto por anos a fio e lhe pediu ajuda estava materializado bem ali na sua frente.
--- Ei, padre! – Disse o velho Billy. – A moça aqui falou que veio resolver as maldições de Ashville. – O que o senhor acha disso? – Risadas ecoaram.
O padre se levantou sério e aproximou-se de Vera que custou a tomar coragem de erguer os olhos e encará-lo.
--- Venha, moça. Temos muito o que falar a respeito.
O religioso afastou-se até a porta e com muito custo Vera o seguiu. As pernas não queriam obedecer direito. Foram os passos mais difíceis de toda a sua vida.
Entrando no que restara da igreja, Vera vislumbrou parte do teto desabado. Enquanto os olhos percorriam pelos escombros, a frase “You’re free to come in, but pray to leave” (Você é livre para entrar, mas reze para sair) foi pronunciada pelo padre que logo em seguida a golpeou repetidas vezes causando a sua morte.
A esposa do xerife, grávida do clérigo, observava tudo escondida atrás do altar. Abafou um grito súbito e seguiu o padre até as margens do Rio, onde ele enterrou o cadáver de Vera e retornou a igreja como se nada tivesse acontecido.
A mulher desesperada correu para casa sem se deixar perceber e entre lágrimas e lamentos contou ao seu marido tudo sobre a traição.
Dominado pelo ódio, o xerife apressou-se até a igreja para o ato vingativo contra o padre que inescrupulosamente seduzira a sua esposa.
Ninguém sabe o que houve ao certo. Ninguém viu ou ouviu nada que pudesse responsabilizar o homem da lei ou quem quer que fosse pelo assassinato do religioso, que fora encontrado com o pescoço virado para trás e o crucifixo enfiado no traseiro.
A raiva do xerife era tanta que somente matar o desgraçado não bastava.
Fez um pacto com o diabo para que a alma do padre ficasse confinada no forte que construíra debaixo da sua casa.
Brincalhão, o diabo sugeriu algo melhor. Sugeriu que parassem no tempo. Que vivessem repetidamente aquele mesmo dia até que o padre cometesse algo grave que impedisse a passagem do seu espírito pelas portas do céu.
--- Como assim? – O xerife questionou. – Acoitar a minha mulher já não seria o bastante para que o canalha fosse pro inferno?
--- Na realidade não. Ele no mínimo teria que ter cometido um homicídio para ser tragado pelas profundezas do meu reino.
Até aquela tarde, o assassinato de Vera jamais havia ocorrido. Desde 1856 todos daquela cidade dormiam e acordavam parados no tempo, vivendo e revivendo o mesmo dia conforme a promessa do diabo.
E o padre, coitado! Há mais de um século terminava o dia com o crucifixo no rabo após ser desmascarado pelo xerife-corno.
Era melhor que matasse logo alguém e encarasse de vez o inferno.
Em Ashville, ele não poderia cometer nenhum homicídio, pois todos os habitantes da vila já estavam teoricamente mortos e presos naquele pesadelo.
Cansado daquilo tudo, o padre conseguiu abrir uma brecha no mundo paralelo e começou a aparecer para Vera noite após noite até conquistar sua confiança.
Ele não mentiu ao dizer que ela era sua descendente, mas inventou estórias sobre almas presas no porão do diabo para que a moça o ajudasse a se livrar da maldição.
Assim que Vera foi assassinada, os espíritos do padre e de todos os outros habitantes de Ashville finalmente seguiram os seus caminhos.
Vera foi a chave que abriu as portas para o céu e para o inferno. Ela própria continua perdida na cidade fantasma e continuará eternamente a vagar se ninguém tiver coragem suficiente para entrar naquela vila e encontrar os seus restos mortais.




Susy Ramone

Biografia: Susy Ramone é o pseudônimo de Susana Lima, nascida em São Paulo - Capital em 1977. Professora de inglês e escritora, teve a sua primeira publicação impressa intitulada O anjo maldito pela editora Livros Ilimitados em 2010 e um de seus contos será publicado na antologia Histórias Envenenadas da Editora Andross com lançamento previsto para agosto. Muitos de seus textos fantásticos podem ser encontrados no blog Red Rose: www.susyramone.blogspot.com







3 comentários:

  1. Muito bacana esse conto, gostei muito.

    Parabéns Susy.

    Um grande abraço,
    Átila Siqueira.

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  2. Obrigada Átila. Fico feliz que tenha gostado.
    Bloody Kisses!

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  3. Susy, gostei muito, e o final surpreendeu. Conto muito legal.

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