Conto - Último Momento de Amor em Família.





Ilustração by Leila Buk


Em tempo recorde ele atravessou o pântano das ilusões capitalistas carregando uma mesa de cozinha nas costas.

Seus pés estavam cheios de feridas, pústulas de pus explodiam a cada novo passo, seus olhos ardiam e via tudo embaçado não conseguindo mais distinguir muito bem as coisas, seus braços já haviam atrofiado por terem sido mantidos sempre na mesma posição e, acreditem, ele tirava sua força para continuar justamente de seu cansaço. Não queria, nem podia parar. Uma força que fugia das explicações convencionais o forçava a continuar sempre em frente, sempre rumo ao casebre que ele havia avistado há três anos e vinte e sete dias. E antes mesmo que se desse conta, chegou até a porta podre do casebre. Percebeu que o silêncio ali era perturbador, nem barulho do vento, nem o canto dos pássaros, nem o rastejar de uma larva. Nada. Silêncio absoluto. Bateu na porta, ninguém veio atendê-lo. Esperou cinco anos exatos até que a porta se abriu e uma linda mulher de setenta anos incompletos com duzentos e treze quilos lhe cumprimentou sorrindo, parecia dizer com aquele sorriso desdentado que o havia esperado desde o princípio da criação do planeta. Apaixonaram-se, transaram por doze meses e quatro horas e vinte e nove segundos sem parar nem para comer. Alimentavam-se do amor que sentiam um pelo outro e ao final de dez anos já haviam concebido quatro pares de gêmeos, meninas, meninos e um hermafrodita genial em equações matemáticas.
No final do mês de outubro do ano de plantar sapos reais, a mulher adoeceu e antes mesmo que pudessem saber que doença lhe devorava as entranhas, morreu de hemorragia interna, cuspindo sangue entre orações fanáticas. Ele, que lhe jurou amor eterno, ao vê-la padecer sentiu que não possuía mais razão alguma para continuar vivendo. Deu banho em seus filhos e vestiu-os com ternos negros dos pés a cabeça e após e enterro da mãe-mulher, colocou sua prole em fila indiana defronte um carvalho onde se enforcou com o cinto de seu roupão pós-banho. As crianças se entreolharam com expressões sérias carimbadas em seus rostos. A primeira coisa que fizeram foi se livrarem dos ternos, pois como todas as crianças eles também odiavam andar bem vestidos. Depois se separam em dois grupos. Um deles desenterrou a mãe da tumba e o outro desceu o corpo ainda quente de seu pai da árvore. Levaram os dois cadáveres para a cozinha do casebre onde deram banho nos dois e depois os descarnaram. Salgaram as carnes de seus pais e atravessaram o pântano das ilusões capitalistas em busca de seus avôs paternos, sentiam que precisavam de amor, amor de família, amor este que eles sentiam escapar a cada naco de carne que comiam durante a travessia.



Petter Baiestorf

Biografia:  Videomaker precursor das produções independentes em video brasileiro. Expoente do gore nacional com influências diretas de diretores como John Waters, George Kuchar e José Mojica Marins. Na década de 90 do século passado, com colaboração de Coffin Souza e do Grupo Canibal, criou a estética do Kanibaru Sinema (filmes filmados em qualquer formato com orçamento Zero).





2 comentários:

  1. Conto crítico e perverso...

    Eu ainda não conhecia o estilo de Petter Baiestorf, mas já posso adiantar que adorei!!!

    Agora fiquei curiosa para conhecer as produções cinematográficas dele =]

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  2. Petter:

    Também gosto de texto sem parágrafos.

    Sinto que assim a trama se autodevora, fluindo com angústia.

    Ótimo conto!

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