Conto - Acidente...



Fazia pouco mais de um mês que eu havia comprado aquela tranqüila casa e até então ninguém tinha me visitado. Local ermo, afastado da cidade, onde apenas uma pouco movimentada estrada vicinal a localizava no planeta.


Não que a ausência de visitas me chateasse, muito pelo contrário, quando adquiri a propriedade foi exatamente esse o meu objetivo: o isolamento total.
Todos os últimos três finais de semana eu tinha me refugiado naquele ali. Longe de tudo. Problemas, stress, violência e visitas indesejáveis. Era o paraíso que tanto procurava.
Mas a paz não durou muito...
Havia chegado no sábado pela manhã, fato incomum pois era de costume eu chegar lá na sexta à noite, mas devido à uma reunião no escritório que se prolongara mais que o esperado acabei atrasando minha viagem.
Já havia anoitecido e o gostoso frio da mata fez com que eu acendesse minha lareira antes de me acomodar debaixo do cobertor e abrir um interessante livro que lia na companhia de uma deliciosa garrafa de vinho.
Estava absorto em minha leitura e me deliciava com aquilo. Se morresse naquele instante morreria o homem mais feliz do mundo.
O silêncio só não era total devido ao som da madeira estalando no fogo e às gotas da fina garoa que molhava as janelas, o resto era somente silêncio. Nem mesmo grilos se manifestavam na mata tão baixa era a temperatura naquela noite.
Aquela sensação de total isolamento era fantástica. Não havia a possibilidade de alguém bater à minha porta a qualquer instante como acontecia na cidade. Bendita hora que o antigo morador, por graves problemas financeiros em sua empresa, me vendera aquela casa por um preço relativamente baixo.
Era eu, o livro e o vinho. Nada mais.
Confesso que meus olhos por algumas vezes já haviam teimado em fecharem-se, porém a leitura estava demasiada interessante e eu desejava finalizar aquele livro naquela noite. Lutava contra o sono e continuava lendo.
Foi quando alguém desesperadamente bateu à porta.
As fortes pancadas originaram estrondos que ecoaram pela casa, fazendo-me pular de susto na poltrona.
Um misto de surpresa e mau humor me invadiu. Surpresa por não acreditar que naquele horário, próximo das duas da madrugada e com aquele tempo gélido alguém tivesse chegado até ali. Mau humor por ter minha paz dissolvida, por ver que meu objetivo de isolar-me da humanidade havia sido frustrado.
Levantei-me com fúria da poltrona, mas o receio me invadiu. Bandidos... e se fosse um assalto? Que inferno!!! Mas ali??
Empunhei a quase vazia garrafa de vinho na mão e fui até a porta lentamente. Os estrondos das pancadas na porta de madeira me irritavam cada vez mais. Eram pancadas nervosas, fortes, coisa de gente sem nenhuma educação, coisa que eu abominava. Aproximei-me dela.
- Quem está aí? – perguntei com uma voz nada amistosa.
Para meu espanto ainda maior uma voz feminina me respondeu.
- Socorro!! Houve um acidente na estrada e meu filho tá preso no carro, por favor me ajude!! Por favor!!
Estremeci. Se fosse o caso de ser uma armadilha armada por bandidos a mulher do outro lado da porta merecia o Oscar tamanho era o poder de convencimento de sua atuação. Quase me precipitei em abrir a porta prontamente, mas estranhei o fato de não ter ouvido nenhum barulho. Minha vontade era de mandar aquela mulher para o inferno, mas e se fosse verdade? Droga...
As pancadas na porta continuavam e eu enfurecidamente a abri com um rápido movimento.
Lentamente baixei a garrafa que até então empunhava logo acima da minha cabeça. Envergonhado vi a pobre mulher com a fronte machucada fazendo com que um abundante sangramento sujasse seu rosto e suas vestimentas. Ela olhava-me desesperadamente, suplicando ajuda. Senti-me então um verme.
- Por favor senhor, meu filho tá preso no carro, me ajude! Não deixe que ele morra! – gritou ela gesticulando nervosamente.
Com um gesto convidei-a para entrar e indiquei-a gentilmente para que se sentasse na poltrona que ocupava até a pouco.
- Fique calma, eu vou ver o que aconteceu e já volto. – disse disfarçando uma tranqüilidade que eu não tinha. Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
Enquanto eu vestia minha jaqueta a mulher permaneceu chorando e olhando para o fogo da lareira como que buscando algum consolo.
Antes de sair eu novamente falei com ela.
- Pode ficar aqui, não saia, eu já volto com seu filho tá?
Sem esperar a resposta eu me atirei àquela noite escura, fria e chuvosa.
Enquanto caminhava em direção à estrada eu me torturava por ter pensado mal daquela mulher. Mas ainda assim estava irritado pois fui tirado do aconchego da minha leitura, do meu vinho e da minha lareira para congelar no frio e molhar-me com aquela incessante garoa que ensopava minha roupa e meu cabelo.
- Droga, é uma criança. – pensei em voz alta censurando-me – Ela não viria aqui me aborrecer por nada.
Ainda estranhei o fato de não ter ouvido nenhum barulho, fosse de motor ou de acidente. Talvez eu estivesse tão compenetrado em minha leitura que não tivesse mesmo ouvido. Talvez estivesse cochilando. Sei lá.
Após mais alguns passos avistei o automóvel batido em uma árvore. Ele havia saído da estrada e havia ocorrido um choque frontal. Vapor saia do capô, provavelmente do radiador, mas não conseguia ver movimento algum em seu interior. Fiquei angustiado pela possibilidade de a criança estar morta.
Corri até o carro e então pude ouvir o choro da criança no banco traseiro. O alívio tomou conta de mim e naquele instante eu só pensava no bem estar daquela mulher e de seu filho, que fosse para o inferno minha paz egoísta!!
Abri a porta e tomei-a nos braços. Era um bebê e devia ter uns seis ou sete meses de idade. Assim que o envolvi seu choro se silenciou.
Mas estranhei o fato de ver uma pessoa no banco do motorista com a cabeça pendendo sobre o volante, estava inconsciente e eu tinha que ajudá-la embora não imaginasse como faria isso tendo a criança em meu colo.
- Estranho, a mulher não falou que tinha mais alguém. – pensei confuso.
Mesmo sem saber ainda a forma correta de agir eu dei a volta no carro e abri a porta do lado do motorista.
Um horror indescritível invadiu-me a alma.
A mulher inconsciente, e que posteriormente eu viria a saber que estava morta, era a mesma que havia batido à minha porta implorando por socorro e que eu havia deixado sentada em minha poltrona...



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