Conto - Uma Estranha Visão.



Mesmo já passando um pouco dos trinta anos de idade Leonel jamais pôde esquecer aquele Domingo de Páscoa.


Ele devia ter seus quatro ou cinco anos e, como de costume, havia ganhado de seu pai um enorme ovo de chocolate. Talvez o ovo não fosse assim tão grande, mas se comparado àquele pequeno menino franzino, o era.
Feliz como toda criança que recebe seu ovo na esperada data, Leonel comia seu chocolate em frente à casa de sua avó, local que sempre servia de ponto de encontro para toda a família nas datas especiais. Naquela noite não podia ser diferente, todos seus familiares ali se encontravam: os inúmeros irmãos e irmãs de sua mãe com seus companheiros e companheiras.
Uma noite de temperatura amena, com céu estrelado e a calmaria que uma tranqüila rua sem saída de subúrbio proporcionava. Uma rua de paralelepípedos, com sobrados simples e antigos, porém bem cuidados, que transmitia uma sensação de paz e quietude.
Somente as gargalhadas dos parentes no interior da casa de sua avó podiam ser ouvidas, nada além disso.
Leonel estava ali, sozinho, sem que seus pais tivessem que se preocupar com seqüestros ou assaltos. Bons tempos aqueles.
Ao lado do belo automóvel de seu pai, todo lambuzado com o doce, feliz, sem se preocupar com a bronca que provavelmente sua mãe lhe daria, algo lhe chamou a atenção.
Na casa em frente, um sobrado como o de sua avó e como todos os outros daquela viela pacata, Leonel percebeu um repentino e intenso clarão vindo de cima e ao dirigir seus olhos para o local horrorizou-se com o que sua retina refletiu: na escura janela da casa, provavelmente o quarto, como o era na casa de sua avó, ele viu algo semelhante a um esqueleto, de cabelos longos, desgrenhados e loiros, sacudindo-se, balançando nervosamente os braços, como se cambaleasse prestes a cair.
Leonel, aterrorizado devido à sua tenra idade, não se ateve a pormenores da cena, simplesmente jogou seu presente de Páscoa no chão e correu para dentro desesperado.
No interior da casa foi acudido por seus parentes que lhe ministraram água com açúcar na ânsia de acalmá-lo. Era evidente que o pequeno garoto havia se assustado, e muito, com alguma coisa.
Seu pai e seus tios foram para fora averiguar o que poderia ter acometido Leonel de tamanho horror, mas encontraram apenas o ovo de Páscoa caído no chão. A pequena viela estava deserta, nada se movia.
Aquele acontecimento ficara gravado na mente de Leonel. Talvez por ele acreditar que havia sido sua primeira, e até então única, experiência com o sobrenatural, ou talvez por ter perdido aquilo que tanto apreciava em sua vida: um ovo de chocolate.
Nem mesmo ele sabia explicar o motivo, mas de tempos em tempos, sempre próximo à Páscoa, ele se recordava de tal acontecimento e sentia seu coração saltar no peito da mesma maneira como ocorrera naquela noite.
“Um dia tentarei descobrir o que aconteceu.” – pensava ele em tais ocasiões. Mas logo que se passava o Domingo de Páscoa a idéia perdia força e só retornava no ano seguinte, quando as mesmas impressões retornavam.
Chegou a conversar a respeito com seus pais, quando já era adolescente, e nem mesmo eles se recordavam do ocorrido, outras pessoas julgaram tratar-se de algum delírio infantil. Ninguém lhe dava a atenção esperada, mas Leonel sabia que o que vira era real, realmente algo bizarro o havia assustado sobremaneira naquela noite.
Sua avó já há muito havia retornado ao interior do Estado, e ele nunca mais voltou àquela tranqüila viela, mas naquele ano, quando a visão novamente veio-lhe à mente, Leonel decidiu que iria até lá para tentar descobrir alguma coisa.
Faltavam duas semanas para o Domingo de Páscoa, e Leonel tirou seu carro da garagem, já era noite, e pôs-se a caminho da viela distante dali.
No caminho recordava-se se tudo. Das tias empurrando-lhe água com açúcar garganta abaixo na tentativa de acalmá-lo e tudo o mais. Recordou-se de que na ocasião chegou a sentir até mesmo falta de ar, tamanho havia sido o susto. Realmente não se tratava de uma alucinação, ele sabia que não.
Após uns quarenta minutos ele finalmente avistou a bela praça que tinha uma imensa igreja ao seu centro e passou a contorná-la. A viela se localizava atrás dela.
- Me lembro disso tudo, das quermesses que aconteciam nessa praça, minhas tias me traziam aqui como desculpa para paquerar os rapazes. – sussurrou ele sorrindo.
Logo ele já entrava com seu carro na pequena viela. O automóvel trepidava saudosamente, como acontecia nos dias em que ia visitar sua avó. Lentamente procurou pela casa que um dia havia sido dela. Sabia que a reconheceria pela enorme jabuticabeira que ficava à frente da casinha de muro baixo.
Não deu outra, Leonel avistou a bela jabuticabeira, embora o muro tivesse alguns metros a mais do que da época que se lembrava, e estacionou seu carro procurando não olhar para seu lado direito, para não avistar o sobrado que o movera até ali.
- Pois bem, aqui estou, e agora? – falou consigo mesmo.
Sem raciocinar ele desceu, retirou um cigarro do maço, deu a volta em seu carro e deparou-se com a casa. Encostou-se no automóvel e acendeu o cigarro. Deu uma baforada e olhou para a janela. Parecia temer que a criatura bizarra se fizesse presente mais uma vez, mas a janela fechada e escura estava totalmente inerte.
Leonel permaneceu ali, fumando e olhando para aquela casa. Queria acreditar que o ocorrido não havia sido nada além de um delírio de infância, mas a pavor que parecia retornar à sua alma toda vez que se recordava daquela noite o fazia desistir dessa hipótese.
Uma simples visão, um delírio, seriam incapazes de impor tamanho horror a ele, era o que acreditava.
Absorto em seus pensamentos e conjecturas Leonel não percebeu o incógnito vulto que se aproximava às suas costas.
O cigarro já quase lhe queimava os dedos quando o vulto chamou sua atenção e, assustado, Leonel virou-se para ele.
- Você está adiantado rapaz, o domingo de Páscoa é só daqui a duas semanas, ela não vai aparecer hoje. – proferiu um homem idoso com um cigarro no canto da boca.
Leonel ficou sem ação. Como aquele homem desconhecido era capaz de conhecer sua história? Como ele conhecia o motivo que o movera até ali?
O homem se encostou no carro, ao seu lado esquerdo, e pareceu imitá-lo. Olhar perdido na direção do sobrado em meio às baforadas no cigarro sem se importar com o que Leonel pudesse estar pensando.
- Desculpe, mas quem é o senhor? – indagou ele totalmente atrapalhado.
- Meu nome é Diogo, moro aqui nessa viela já há muitos anos, e acho que me lembro de você. Neto daquela senhora que foi morar no interior, se não me falha a memória.
Realmente aquele senhor era um prodígio de memória.
- É, sou eu mesmo, mas faz muito tempo isso, como o senhor se lembra de mim?
- Seus olhos, os olhos de uma pessoa nunca mudam. Me lembro dos seus olhos, eles ficaram marcados em minha mente desde aquele domingo de Páscoa. – o velho respondia sem desviar os olhos daquela janela que parecia ser o portal do inferno. Envolta na escuridão e no silêncio, assim como naquela longínqua noite, para a qualquer momento abrir-se dando vazão a criaturas infernais.
- Aquela noite de Páscoa. O senhor também estava em casa? – indagou Leonel aturdido.
- Sim rapaz. Eu era amigo da família. Sempre que o pessoal se juntava na casa da sua avó eu estava presente, mesmo quando não era convidado. – respondeu ele com uma risadinha debochada.
- Entendo, desculpe, mas não me lembro do senhor.
- Não tem problema, o importante é que eu me lembro. – seus olhos estavam injetados naquela janela como se aguardasse alguma aparição a qualquer instante. Isso causava medo em Leonel.
- O senhor disse que ela não vai aparecer hoje. Ela quem? Como o senhor sabe o que vim fazer aqui? – Leonel acendeu outro cigarro nervosamente.
- Você, assim como vários outros, veio aqui atrás de algumas respostas, ou não? – respondeu o velho finalmente virando-se para ele e mirando-o nos olhos.
- Sim, tem muita coisa que procuro saber. Coisas que me martelam a cabeça desde aquele domingo. Aquele que o senhor sabe qual. – Leonel gaguejava nervosamente.
- Tem tempo? – indagou ele, sem desviar os olhos dos seus.
- Sim, mas o senhor tem as respostas que procuro?
Um misto de alívio e desconfiança invadiu Leonel. Finalmente ele entenderia o que havia se passado naquela noite ou seria aquele velho mais um daqueles que adoram inventar histórias para assustar as pessoas?
A verdade é que não lhe custava nada ouvir o que aquele homem tinha a dizer.
- Me lembro de ver você, miudinho, raquítico, entrar correndo feito um doido pela sala e se jogar no colo se sua mãe. Todos vieram te acudir, na época você era a única criança da família. Suas tias e sua avó te entupiram de água com açúcar pra te acalmar. Seu pai e seus tios correram pra rua tentando encontrar algum possível meliante, mas a viela estava tão deserta quanto está agora.
Leonel estava mergulhado em suas lembranças. Realmente aquele homem se recordava de tudo, assim como ele, e tal fato lhe parecia um tanto quanto estranho pois nem mesmo seus pais se lembravam disso, por que ele se lembraria?
- Foi assim mesmo, mas como o senhor se lembra disso tudo? – indagou ele buscando no perfil daquele homem alguma lembrança enclausurada em sua mente.
- Me lembro que você explicou o que tinha visto e que chorou muito pelo chocolate que deixou cair no chão com o susto. Claro que ninguém deu atenção pra sua explicação, afinal, quem daria importância pro que um menino de quatro anos dizia não é verdade? Quanto ao chocolate não teve problema, seu pai comprou outros dois pra você no dia seguinte. Mas nem mesmo tal alegria foi capaz de apagar da sua memória aquela visão terrível que teve. – prosseguiu o velho sem dar atenção para Leonel.
- Verdade, ele me deu dois no dia seguinte, me lembro disso agora. – era impressionante o fato do velho lembrar de coisas que nem mesmo Leonel se lembrava mais.
- O que infelizmente ninguém sabia, e nem sabe até hoje, é que naquela noite o que você teve não foi uma alucinação. Nessa casa há algo terrível que se recusa a sair dela e que nos Domingos de Páscoa se faz presente na janela onde a maior cicatriz de sua alma foi produzida. – o velho cessou a narrativa e deu mais uma longa baforada em seu cigarro. Estranhamente o velho falava um linguajar mais erudito em dados momentos, como se o que dissesse não passasse de um texto decorado.
Os olhos de Leonel se arregalaram, parecia que a verdade pela qual ele tanto procurava estava a ponto de ser revelada, após tantos e tantos anos.
- Como assim? Do que o senhor está falando? – indagou ele encarando-o.
- Logo que essa vila foi construída, todos viviam aqui harmoniosamente. Havia muitas crianças, jovens casais dando continuidade às suas famílias, casas cheirando à tinta fresca, mobília nova, enfim, famílias iniciando suas vidas. Sua avó não morava aqui ainda, ela só se mudou muitos anos depois, quando os originais donos decidiram se desfazer da casa devido à grande tristeza que se abateu sobre esse lugar. Bem, como eu dizia, todos começavam suas vidas, cheios de esperanças e anseios, era um lugar feliz.
Nessa casa – prosseguiu ele – aqui em frente vivia um casal com seus dois filhos. Sim, nessa casa que agora observamos. Eram o xodó da viela pois a bela moça havia dado à luz um lindo casal de gêmeos. Passaram-se os anos e as crianças cresceram, ativas e serelepes como toda criança saudável costuma ser.
O velho fez uma pausa e seus olhos se encheram de lágrimas.
Leonel mantinha-se em silêncio apenas acompanhando o que ele dizia. Nem ao menos piscava para não perder nada do que ouvia.
- Pois bem. Chegou mais um Domingo de Páscoa, e aquele velho costume de ovos de chocolate, coelhinho da Páscoa e tudo o mais, se fez presente. O pai escondera os ovos e disse que havia sido obra do coelhinho, como é a tradição. As crianças, que tinham por volta de quatro anos, eufóricas, saíram em busca do chocolate. Os pais, felizes, sentados na sala, ouviam a arruaça das crianças revirando a casa em busca do presente. Felizes, as sorridentes crianças foram para o andar superior. Os pais aguardavam os gritos de alegria de seus filhos, até que sua respiração foi cortada pelo repentino silêncio e por dois fortes estrondos vindos da calçada. Ambos, aterrorizados, correram para a rua e depararam-se com os filhos convulsionando em uma imensa poça de sangue, com seus miolos expostos. O casal correu até elas e desesperados tentaram consertar-lhes as cabeças dilaceradas, claro, em vão.
A vida da viela após o fato mudou completamente. Era impossível transitar por ela sem que viesse à mente aquela imagem das crianças mortas, as pessoas pareciam-se com flores murchando dia após dia.
Os pais das crianças não mais saiam de casa. O pai deixara de trabalhar e a mãe já não mais cuidava de si, da casa ou do marido. Mas o horror não havia se findado, ainda.
Um ano havia se passado, o primeiro Domingo de Páscoa após o acontecimento funesto, e uma nova morte acometeu a viela. O pai, transtornado, jogou-se pela mesma janela que um ano antes havia lhe vitimado os filhos. Sua morte não foi imediata, como adulto, resistiu mais aos ferimentos, mas após duas semanas de internação, veio também a falecer.
Nova pausa. O velho já tinha lágrimas rolando-lhe pela face. O olhar permanecia perdido em direção a casa em frente e por vezes, durante a narrativa, ele esforçava-se para conter o choro que teimava em brotar-lhe da garganta.
- Pobre menina. Tão linda e tão amargurada... Primeiro os dois filhos, em seguida o marido... Seus familiares quiseram levá-la para sua cidade natal, já que havia ficado sozinha naquela casa que tantas lembranças tristes lhe trazia, mas ela não quis ir com eles e ficou aí, sozinha, esquecida, perdida me meio à tristeza e à desesperança.
Já faziam vários dias que ninguém a via e nem se ouvia ruídos na casa – prosseguiu o velho – a vizinhança resolveu adentrá-la e averiguar mais uma provável desgraça, mas se surpreenderam ao encontrar o imóvel vazio. Ela não estava mais lá, apenas dois ovos de Páscoa se encontravam encima da estante da sala. O pessoal foi atrás dos parentes, mas ninguém teve notícias dela. Aos poucos a vila começou a esvaziar. Aquele lugar que antes irradiava alegria e esperança parecia agora tomado por uma névoa de tristeza e pessimismo. Até mesmo as crianças se entristeciam, principalmente com a chegada da Páscoa, ao se recordarem do que tinha acontecido. Uma a uma as famílias partiam.
- Meu Deus, que triste isso. Então aquele vulto... – tentou concluir Leonel, mas o velho o interrompeu ao prosseguir com sua narrativa.
- A família vendeu o imóvel e algumas pessoas chegaram a morar nele depois disso, mas diziam que com o passar do tempo não se sentiam mais à vontade na casa. Sentiam-se como que sendo observadas. Algumas diziam ouvir sons durante a noite. O choro de uma mulher. Risadas de crianças. A casa acabou ficando mais tempo vazia do que com moradores a partir de então. Você não foi o primeiro a ver a loira. Meu neto, Gabriel, também teve a mesma visão que você num Domingo de Páscoa, dois anos antes. E outras crianças também já a viram, a mulher loira, cadavérica, como desejando desesperadamente impedir que seus filhos caíssem pela janela...
Leonel teve sua atenção voltada para sua direita, uma forte luz o cegou de repente. Seu coração gelou.
- O que quer aqui rapaz? Os vizinhos fizeram uma queixa, dizendo que um estranho estava aqui. Quem é você? – eram dois policiais que desciam da viatura e vinham em sua direção com arma em punho.
- Calma guarda, só estou aqui conversando com esse senhor. – respondeu Leonel protegendo os olhos da forte luz dos faróis, mas ao olhar para seu lado, deparou-se com o nada. Onde estava o velho Diogo? Ficou desconcertado.
- Muito engraçado. Andou bebendo ou algo do tipo? – disse o policial já virando-o de cara para seu automóvel.
Após as averiguações de rotina os policiais decidiram liberar Leonel, já que não havia nada que motivasse sua detenção.
- Te aconselho a procurar outro lugar para meditar rapaz. Os velhinhos dessa viela são muito chatos, ligam para a central por causa de qualquer coisa.
- Tudo bem guarda, tudo bem, já vou embora. – respondeu Leonel meio no piloto-automático.
Onde havia ido parar o velho Diogo? O que havia acontecido? Não daria tempo de o velho desaparecer sem que os policiais o vissem.
Será que tudo não passara de outra alucinação? Estivera ele ali, durante vários minutos, falando sozinho?
O vulto. Seria aquela história verdadeira ou alguma invenção de um velho que adorava inventar histórias de terror e assustar pessoas medrosas? Mas histórias de que velho? Como e por quê Diogo se escondeu?
Leonel parecia ainda mais confuso do que quando chegara até aquela viela. A dúvida que tinha a respeito do vulto na janela parecia ser menos aterradora do que a que tinha agora em relação àquele velho. O vulto, ele havia visto quando criança, ele era mais suscetível à visões e impressões, mas estivera a pouco com o velho, conversara com ele...
Adentrou seu carro e deu a partida vigiado pela viatura que o vigiava.
Ele foi lentamente até o final da viela e deu a volta com o carro indo em direção à praça, à saída, trepidando por causa dos paralelepípedos. Uma derradeira olhada para a janela que havia motivado sua visita se fez necessária, como selando de vez aquela história.
Ao invés da escuridão de poucos minutos atrás, Leonel aterrorizou-se ao encontrar agora a janela aberta e o velho Diogo sorrindo-lhe sinistramente em meio à escuridão que o cercava.



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