Conto - Flores Para a Morte.



As acinzentadas paredes do mausoléu serviam agora como moradia para aqueles três anjos que partiram sem se despedir. As imagens que serviam para ornamentar a construção pareciam compadecer-se daquele pobre homem que, ali sentado, relembrava os momentos felizes que havia tido ao lado daqueles três que agora ali jaziam.




Haviam se passado cinco anos desde o acidente fatal que tirara a vida da esposa e do casal de filhos. Desde aquele fatídico dia a vida daquele homem nunca mais foi a mesma.
Já fazia algumas horas que ele estava ali sentado no hall do mausoléu. Ali sentado ele se sentia mais próximo daqueles que, cuja ausência, transtornava sua vida solitária.
Por alguns momentos o triste homem teve a nítida impressão de ouvir risos de criança ecoarem dentro da construção. Ele aguçara os ouvidos na tentativa de convencer-se de que estava lúcido, mas nada mais ouviu. Foi até o portão de entrada e constatou que o cadeado estava ileso de forma que não havia a possibilidade de alguém estar ali dentro.
Arrasado, ele retornou ao local de outrora e novamente sentou-se para entregar-se às lágrimas. No fundo ele esperava que seus ouvidos não o estivessem enganando pois isso significaria que seus filhos não haviam realmente partido.
Cinco anos. Mesmo após tanto tempo a dor ainda não o havia abandonado.
O vento frio que começava a soprar indicava que chegava o momento de partir. A noite se precipitava.
- Meus amores, se soubessem quanta falta vocês me fazem... – suspirou o rapaz levantando-se lentamente enquanto enxugava as lágrimas que molhavam sua face.
Já era seu costume passar os sábados ali sentado. Permanecia horas e horas absorto em seus pensamentos e lembranças.
Mas aquele sábado foi diferente.
Ao levantar-se observou que logo na entrada da construção, ao lado da porta que minutos antes ele havia verificado o cadeado, havia um belo buquê de flores.
Observou-o com estranheza pois tinha absoluta certeza de que o belo arranjo não estava ali à pouco. Olhou ao redor e percebeu que não havia mais ninguém ali além dele.
- Estranho isso, quem colocou isso aqui? – murmurou ele enquanto abaixava-se para apanhar o buquê.
Não era especialista em flores, mas pode identificar algumas delas como sendo margaridas. As demais ele não conhecia embora todas fossem muito bonitas.
Estranhamente ele partiu do cemitério levando-as consigo. Não sabia bem o motivo, mas não queria deixar ali algo que não tinha sido ele que tivesse depositado.
Os funcionários estranharam o fato pois o normal era as pessoas entrarem com flores e saírem sem elas, e não o contrário. Aquele homem já era um velho conhecido deles já que todo sábado ele visitava o mausoléu onde estavam os restos mortais da família que morrera em trágico acidente automobilístico. Ele não costumava levar flores, muito menos sair de lá com alguma, mas acharam melhor deixá-lo partir, compadecidos da dor que o acompanhava.
Já no seu apartamento ele deixou o arranjo encima da mesa da cozinha, sem dispensar-lhe os devidos cuidados como seria o correto. Havia alguma coisa nelas que o incomodava. Talvez o fato de não ter visto quem as depositara em oferenda à seus entes queridos.
Tomou seu banho, assistiu televisão e acabou adormecendo...
Naquela noite sonhou com a esposa e os filhos. Eles passeavam felizes em um belo parque. Os filhos correndo logo à frente enquanto ele caminhava abraçado à sua amada esposa. Estavam felizes. O céu de profundo azul contrastava com o verde do gramado que lhe acariciava os pés. De repente tudo escureceu e ele acordou assustado com um estranho estrondo. Ergueu-se na cama e preparou os ouvidos para ouvir mais alguma coisa. Somente uma sirene de ambulância ao longe podia ser ouvida, nada mais.
Resolveu voltar a dormir na esperança de, ao menos em sonhos, estar ao lado daqueles que tanta falta lhe faziam.
No domingo ele foi até a casa da mãe, como sempre costumava fazer, sem se importar com as flores que havia deixado encima da mesa da cozinha. Na verdade nem se lembrou delas.
Segunda-feira à noite. Ele retornou do trabalho e só ao ir até a cozinha providenciar algo para comer é que se deu conta das flores.
- Nossa, nem me lembrava mais disso. – comentou ele apanhando-as.
Elas estavam intactas assim como quando ele as encontrara no cemitério. Não haviam murchado, como seria de se esperar, e isso despertou a curiosidade do rapaz.
- Coisa mais estranha, já era pra isso tá morrendo não era? – disse ele enquanto pegava uma jarra e a enchia com água. Ao acomodá-las ele estranhou o fato de a água borbulhar ao entrar em contato com elas, como se tivesse gás.
Arrancou uma das pétalas de uma margarida e constatou que ela era natural já que chegara a considerá-las artificiais devido ao estado de conservação que ainda apresentavam.
- Negócio mais estranho... – murmurou ele.
Enquanto preparava e comia um sanduíche ele averiguou que as pequenas bolhas desapareceram. Já era hora de dormir.
Estaria ele ficando louco? Havia se passado alguns minutos desde que se deitara e ele pôde nitidamente ouvir risadas de criança vindas da cozinha, assim como tinha ouvido no cemitério no último sábado.
Levantou apavorado e correu até o local ainda ouvindo as risadas. Para seu horror a água do vaso que continha as flores novamente estava repleta de pequenas bolhas como se fervesse. Nada podia ser ouvido, as risadas silenciaram-se. Caminhou lentamente até o vaso e o tocou para aferir sua temperatura. Não, a água não estava quente e as bolhas desapareciam lentamente.
O fato se repetiu durante toda a noite. Risadas de crianças acordando-o, a água do vaso apresentando bolhas de ar. Aquela situação estava levando aquele homem à loucura.
Terça e quarta-feira. Risadas, bolhas, o vaso, as flores... Noites mal dormidas. Seu desempenho na agência de design já estava sendo prejudicado e o atormentado homem achou melhor antecipar sua visita ao cemitério.
Mas logo pela manhã o horror inaugurou a quinta-feira daquele homem.
Quando aproximou-se da jarra notou que a água tinha uma asquerosa coloração rubra, como se fosse sangue. Coçou os olhos ressecados pelo sono e atentou-se à jarra, a coloração permanecia.
- Que diabos está acontecendo aqui? – indagou ele com a voz embargada pelo choro que se iniciava.
Sem mais pensar ele apanhou enojado as flores e colericamente arremessou a jarra contra a parede, fazendo-a em pedaços.
Desceu para o estacionamento.
Alguns minutos depois ele já se encontrava no cemitério que naquele momento abria seus portões.
O funcionário estranhou a visita daquele homem naquele dia e horário fora do costume, mas para quem trabalhava num local como aquele, comportamentos estranhos e excêntricos eram comuns de serem presenciados.
Passos apressados. O ar frio e úmido umedecia seu cabelo. O local estava deserto e ele podia ouvir apenas o som dos seus próprios passos apressados ecoando por entre os mausoléus e as lápides que o cercavam.
As imagens negras pareciam esconder-se por entre a névoa que os envolvia. Não tinham mais o olhar de compaixão, mas sim, de ira.
Observou o mausoléu da família encoberto por uma tenebrosa névoa, entrecortado pelos tênues raios do dia que se iniciava.
Pela primeira vez em sua vida teve medo daquele lugar. Um lugar até então que lhe servira como símbolo de saudade e carinho agora era a imagem do medo e do desconhecido. Aproximou-se dele...
Adentrou pelo pequeno hall que levava ao interior do mausoléu e um estranho odor mortuário invadiu-lhe as narinas. Seu estômago revirou e ele levou a mão à boca para impedir que vomitasse. Jamais havia sentido aquele cheiro horrendo, fosse ali ou em qualquer outro lugar.
Respeitosamente depositou o arranjo de flores no mesmo local de onde o tinha tirado. Evitava olhar pra o interior da construção. Parecia temer que houvesse alguma coisa em seu interior a observá-lo.
Seus olhos se arregalaram e seu coração disparou ao notar que, ao afastar-se das flores, elas murcharam como se toda a vida que continham tivesse sido-lhes retirada de uma única vez.
O atormentado homem se afastou do mausoléu em desabalada correria ouvindo ao longe as risadas de criança que tiraram-lhe o sono durante aqueles últimos dias.
Nunca mais ele pôs os pés naquele lugar.




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