Conto - O Mal Liberto.





O museu da universidade estava repleto de pessoas curiosas por ver o material que recentemente havia chegado. Infelizmente a viajem foi em vão, pois o material ainda não estava na ala aberta à visitação pública. Havia a necessidade de serem realizados estudos acerca delas para só então irem para os salões abertos.


Cerâmicas, colares e toda a sorte de material arqueológico imaginável havia sido encontrado nas profundezas de uma caverna famosa como ponto turístico e jamais alguém poderia imaginar que nela fosse possível encontrar um material tão rico e farto. Não somente pelo local inusitado, mas principalmente pela localização do material encontrado: a muitos e muitos metros da superfície.
Não era a primeira vez que uma equipe de espeleólogos adentrava as profundezas da caverna com o intuito de localizar seu ponto mais profundo, o que diferiu essa expedição foi o caminho seguido.
Todos ficaram abismados com o que encontraram.
Se já não bastasse o material que costumeiramente se encontra em sítios arqueológicos (cerâmicas em geral, colares e etc) o mais surpreendente e encantador foi uma enorme urna de rocha branca, semelhante a uma tumba, encontrada ao centro de um enorme salão encravado no interior da caverna.
Garganta do Diabo. Inúmeras lendas tentavam explicar a origem do seu nome, talvez finalmente seria descoberto o motivo de ele ser tão aterrorizante.
Passados alguns dias desde a chegada de um material tão intrigante os especialistas da universidade finalmente passaram a se dedicar ao seu estudo.
- Aníbal, está na hora já, vamos nessa, hoje é sexta-feira. Você não cansa de ficar aqui o tempo todo? – avisou o rapaz àquele senhor compenetrado que, debruçado sobre a enorme urna, estudava estranhas escrituras nela esculpidas em baixo relevo.
- Poxa Leonel, o tempo voou. Mas pode ir meu rapaz, fique tranqüilo. Entendo que você, na sua idade, tem amigos, festas e possivelmente uma namorada com que se preocupar. No meu caso não tenho ninguém me esperando em casa, fique à vontade para ir, eu me viro por aqui. Quero terminar esse trecho do texto antes de ir embora. – respondeu Aníbal, renomado pesquisador da universidade, sem desviar seus olhos das inscrições que estudava.
Leonel comoveu-se com a afirmação daquele senhor. Uma vida solitária e sem familiares não devia ser algo muito agradável. Ele, por alguns instantes, olhou piedoso para o simpático senhor de cabelos e barba brancas que se dedicava de corpo e alma ao estudo daquele material.
- Tudo bem então, se o senhor prefere. Tenha um ótimo final de semana, eu avisarei a segurança que o senhor ficou, tudo bem? – disse ele pendurando seu jaleco no cabide atrás da porta.
- Ótimo Leonel. Bom passeio e juízo. Nos vemos na segunda-feira então. – prosseguiu ele acenando sem desviar seus olhos das misteriosas inscrições.
Assim que ficou sozinho na sala Aníbal reergueu-se e tirou um cigarro do bolso do jaleco e, sentando-se numa cadeira próxima, acendeu-o. Tomou um álbum de fotos que estava sobre uma mesa próxima e passou a refletir.
- Que material incrível essa urna. Como povos antigos foram capazes de levá-la até as profundezas daquela caverna? Nós mesmos tivemos muita dificuldade em resgatá-la sem a danificar. E o local? Por essas fotos parecia que era uma espécie de local de adoração devido à disposição do material encontrado. O mais surpreendente é que essa urna parece estar lacrada, mas não há lacre algum. Já tentamos remover a tampa, mas ela está presa na superfície, algo além do seu presumível peso. É como se tivesse sido fechada a vácuo. Como isso é possível? – conjeturava ele abismado frente à tão fascinante mistério.
Mais algumas baforadas no cigarro e ele tomou o bloco de anotações que estava sobre a urna.
- Estou quase traduzindo essas inscrições, falta bem pouco. Mas até onde eu já pude entender não há pista alguma sobre a forma como foi fechada. Parece um poema, algo assim. Essa coisa não pára de me surpreender, como é possível ela estar localizada no interior de uma profunda caverna da América do Sul e possuir inscrições num idioma do Oriente Médio? – indagou ele perplexo relendo as anotações.
Aníbal levantou-se e munindo-se de um pé de cabra forçou a lateral da urna.
- Espero não danificar isso. – resmungou ele entre os dentes forçando a ferramenta. Rodou ao redor da urna de rocha forçando a tampa por todos os lados, em vão, ela nem sequer se moveu.
- Como será que abriremos isso? Já tentamos de tudo que foi jeito, droga... Bom, deixe-me ir ao banheiro, a natureza chama, enquanto isso penso em alguma coisa. – disse ele acendendo outro cigarro e dirigindo-se ao sanitário.
Sobre a urna estava a ferramenta por Aníbal manuseada e seu bloco de notas onde estava o trecho das inscrições que já haviam sido traduzidas.
“Choro de bebês, ganir de cães, disparada de pássaros, horror das mulheres e partida dos homens...”
Aparentemente palavras desconexas que deixavam Aníbal confuso acerca de seu significado, porém, sábias palavras que deveriam ter sido analisadas com maior cuidado antes que qualquer atitude fosse tomada em relação àquela urna misteriosa.
Quando já vestia as calças Aníbal assustou-se com um ruído metálico vindo da sala que estava há pouco. Rapidamente ele foi até lá e deparou-se com um dos seguranças da universidade em pé ao lado da urna.
- Pois não amigo, posso ajudar em alguma coisa? – indagou rudemente Aníbal sem disfarçar que a presença do homem o desagradava.
- Desculpe senhor Aníbal, é que eu vi a luz acesa e resolvi verificá. Não sabia que o senhor tava aqui ainda.
- Pois é, eu estou, meu auxiliar não o avisou que eu iria permanecer aqui? – prosseguiu o senhor apanhando a ferramenta caída no chão.
- Não senhor, ninguém me disse nada. Bom, vô dexa o senhor trabalhar em paz. Desculpe o incômodo – despediu-se o segurança percebendo que sua presença era desagradável.
Aníbal nada respondeu e apenas acompanhou com os olhos a rápida saída do homem. Ao ver a porta fechar-se ele desabafou.
- Mas que droga, será que nem mesmo à noite a gente tem paz pra trabalhar aqui? Durante o dia são esses estagiários que mais fazem perguntas do que me ajudam a encontrar respostas. Agora sim eu posso trabalhar tranqüilo, se esse imbecil não me interromper, gente ignorante, sem cultura... Aposto que vai dormir a noite toda, e ainda ganha pra isso. É o fim mesmo...
Nervoso ele apanhou o bloco de notas e averiguou se o segurança não havia bisbilhotado em suas anotações. Tudo parecia estar ok.
- Bom, vamos lá. Brasileiros não desistem nunca, não é isso que dizem? – resmungou Aníbal em tom de cinismo enquanto apanhava novas ferramentas.
Um formão e uma marreta. Os sons estridentes das pancadas desferidas pelo pesquisador ecoavam solitários pelos longos corredores da universidade vazia.
O homem que já beirava os sessenta anos transpirava devido ao esforço que impunha na esperança de ter revelado o conteúdo da urna.
Quase uma hora se passou. Aníbal já havia forçado a tampa por todos os lados diversas vezes e nenhuma brecha havia sido aberta no quase imperceptível vão que havia entre a tampa e a lateral da urna. O formão quase não o adentrava de tão pequeno.
Já cansado devido ao esforço ele desferiu um golpe descuidado contra o formão e acabou ferindo uma das mão com a ferramenta.
- Que inferno isso, dá vontade de colocar uma bomba e arrebentar tudo!! – esbravejou ele arremessando as ferramentas sobre a urna e percebendo que um doloroso filete de sangue brotava da sua mão.
Ao arremessar os objetos uma quase imperceptível gota de sangue respingou sobre a branca tampa da urna, mas Aníbal, que correu a procura do estojo de socorros, foi incapaz de notar esse fato.
Alguns minutos depois ele retornou já com um curativo em sua mão e acendeu mais um cigarro enquanto admirava a urna.
- Preciso desvendar seus segredos. Nunca algo semelhante foi encontrado, eu vou descobrir o que você é nem que seja a última coisa que eu faça. Meu nome entrará para a história, não serei como esses Zé-Ninguém de quem ninguém se lembra mais semanas após sua morte. Essa urna me imortalizará. Mas antes vou descansar um pouco, minha idade já não permite mais esses excessos todos. – resmungou Aníbal puxando um colchonete que estava atrás de um armário e deitando-se sobre ele.
Enquanto degustava um cigarro ele pensava em alguma maneira de abrir a urna, até que pegou no sono, após alguns minutos.
As horas correram rápidas como se a ânsia de que o Sol raiasse se sobrepusesse à força da Lua, como se o Universo temesse a escuridão.
Aníbal abriu um dos olhos e verificou as horas. Quase cinco da manhã.
- Droga!!! Dormi demais!!! – gritou ele levantando-se rapidamente.
Ao pôr-se em pé sentiu uma incontrolável náusea e sua cabeça rodopiou. Se não houvesse a mesa ao seu lado para apoiar-se certamente ele cairia.
- Mas o que é isso? – indagou ele tapando o nariz para livrar-se do odor nauseabundo que impregnava a sala. De onde vinha aquele odor fétido?
Ele abriu a janela na tentativa de que o ar da noite eliminasse aquele odor terrível, mas seu espanto foi gigantesco quando observou a tampa da urna caída ao lado dela.
- Mas... o que é isso? – indagou ele perplexo olhando para o artefato.
Pela distância que estava não era-lhe possível visualizar o interior da urna, e esquecendo-se do cheiro terrível que impregnava o local ele lentamente se aproximou dela.
- Quem abriu isso? Eu não ouvi nada!! – falava ele atônito olhando ao redor.
Seu espanto foi ainda maior quando percebeu que ela estava totalmente vazia.
- Mas não tem lógica isso. Pra que uma urna dessas, tão bem fechada, vazia? – ao fazer essa indagação um frio percorreu-lhe a espinha.
Talvez devido ao pressentimento que tenha tido ou talvez pelo vento frio que entrara pela janela recentemente aberta, a verdade é que pela primeira vez na vida Aníbal sentiu medo por estar sozinho.
Ouviu um barulho vindo de um canto da sala, virou-se em sua direção, mas não havia nada. Apavorado ele empunhou o formão com o qual ferira sua mão e olhou ao redor.
Seu medo diminuiu quando viu a porta abrir-se e o segurança novamente adentrar a sala.
- O senhor tá bem? – indagou ele ao ver a inusitada situação de Aníbal.
Ele consentiu com a cabeça embora não tivesse certeza disso.
- Tive a impressão de tê ouvido um grito desse lado do prédio. O estranho é que pareceu um grito de mulher. O senhor tá sozinho aqui né? – prosseguiu o segurança dando uma “geral” com os olhos pela sala, desconfiado.
Novamente obteve como resposta um aceno da cabeça de Aníbal.
- O senhor realmente tá bem? Parece nervoso. – disse o intrometido rapaz adentrando a sala.
- Nossa, finalmente o senhor conseguiu abrir essa coisa, muito bom. Mas ela tá vazia, que coisa heim!! – disse ele aproximando-se deles.
- Não tenho tanta certeza disso. Leia isso. – gaguejou Aníbal apontando para seu bloco de notas sobre a mesa e baixando o formão lentamente.
Parecia inacreditável, mas Aníbal se dispunha a compartilhar de suas descobertas com uma pessoa que até então ele julgava como ignorante e fútil.
Com um olhar abestalhado comum aos leigos o jovem tomou o bloco e, com aparente dificuldade, leu o que estava escrito na folha que estava à frente.
Aterrorizado ele jogou o bloco sobre a mesa.
- Deus pai misericordioso. O que é isso senhor? Parece coisa ruim!!
- É essa a impressão que você tem? – indagou o pesquisador jocosamente.
- Claro que é, parece uma coisa ruim, sei lá, me deu medo. O que é isso?
- É o que está escrito aqui na urna, em outra língua, nesses “desenhos”.
- Hieróglifos o senhor quer dizer. O pastor lá da igreja já falo alguma coisa disso. – corrigiu o segurança para espanto de Aníbal.
- Nossa, você não é tão ignorante quanto eu imaginava, mas não são hieróglifos, é uma escrita cuneiforme. Enfim, está tarde para ministrar aulas não acha? – disse ele apanhando o bloco de volta.
- Pois é, imaginei que o senhor tivesse dormindo essa hora. O senhor não ouviu nada? – insistiu o segurança espiando pela sala.
- Não, agora, se me faz o favor... – acenou em direção à porta.
- Claro, me desculpa, mas vô investigá por aí, esses estudante... o senhor sabe como é... – disse ele indo para a porta.
Aníbal nada respondeu. A forma simplória como o rapaz se comunicava lhe causava certo asco, principalmente pelo ar abobalhado que ele trazia. Sua presença junto dele na sala havia dissipado o medo que sentia, mas algo dizia que aquele homem não deveria permanecer ali, era como um pressentimento.
Novamente sozinho na sala Aníbal sentiu aquele calafrio subir-lhe pelas costas.
- Deixe-me ver isso. – resmungou ele virando-se na direção da urna.
Como um flash ele vislumbrou um rosto em decomposição defronte a ele, para em seguida desfalecer, caindo pesadamente ao chão.
Com a visão turva ele viu-se cercado por imensas labaredas que consumiam os móveis da sala. A urna, branca como as nuvens do céu, jazia imponente em meio ao fogo.
Aníbal aterrorizou-se, pois sentiu que a morte estava próxima. O insuportável calor fazia com que a carne do seu corpo cozinhasse com ele ainda vivo, causando-lhe uma dor indescritível.
Tentou gritar, porém não conseguiu.
Falta de ar devido à fumaça. Aníbal respirou fundo e sentiu seus pulmões queimarem devido à temperatura do ar. Tomado pela insuportável dor e pela falta de ar, Aníbal novamente desfaleceu, dessa vez para não mais acordar.
Após os bombeiros findarem o incêndio foi a vez dos peritos investigarem sua causa. Com o decorrer dos meses chegaram à conclusão de que o acidente fora devido, provavelmente, a um cigarro aceso. O caso foi dado por encerrado.
O que não veio ao publico foi o fato de que na sala em que se iniciara o incêndio foram encontrados três corpos: o de Aníbal, o do segurança que estava de plantão e que provavelmente viera em seu auxílio e mais um corpo não identificado.
Também não foi mencionado o fato de a urna estar misteriosamente aberta e tão menos, posteriormente, o resultado final da tradução das inscrições cuneiformes que ela continha:
“Choro de bebês, ganir de cães, disparada de pássaros, horror das mulheres e morte dos homens. Somente aquele que ocasiona tudo isso nos obrigaria a criar uma prisão como essa. Que o grande Pai nos perdoe se algum dia ela for aberta com a concessão de sangue".


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