Conto - Killer Instinct.



Desde a infância ele nutria estranhos sentimentos.
Uma criança normal em seu nascimento, mas com o decorrer do tempo era possível perceber que havia algo diferente com ela. Nervosa, tímida e metódica, aos quatro anos ela já era totalmente o oposto das demais crianças de sua idade.


Alguns parentes diziam que isso era normal e que cada criança (assim como cada pessoa) era diferente uma da outra, cada uma possuindo seu jeito próprio, seu caráter próprio. Mas seus pais, talvez por não aceitarem a maneira de ser do filho, acabaram levando-o a diversos psicólogos na tentativa de diagnosticar e solucionar o que eles chamavam de problema.
Como nada foi constatado de anormal, após meia dúzia de profissionais terem-no analisado, acabaram deixando de lado o que eles chamavam de problema tanto por motivos financeiros como por eles possuírem dois filhos mais novos que também necessitavam de sua atenção.
Os anos foram passando e a criança cresceu normalmente aos olhos das outras pessoas sem que elas imaginassem o que realmente se passava dentro da mente daquele garoto franzino e tímido.
O pai, que sempre sentiu-se incomodado com a maneira de ser do garoto, quando não o ignorava estava maltratando-o física e mentalmente. Pancadas, insultos, deboche, enfim, toda a espécie de atitudes que jamais deve-se ter com uma criança tenha ela ou não algum problema. Tratamento esse que não era dado a seus irmãos que para ele eram “normais”.
O que é ou não normal? Pergunta complicada para ser simplesmente respondida.
A mãe, talvez pela tenra idade ou por total falta de aptidão, limitava-se a dar-lhe comida, educação e bem estar físico. Carinho, colo e afago, o garoto jamais soube o que era isso embora nesse ponto seus irmãos também sofressem de carência.
Durante a infância ele tentava defender-se das atitudes agressivas do pai, tentava fugir quando percebia seu olhar perturbado, mas era ainda mais massacrado por ele sem que a mãe fizesse nada para impedir isso.
Na escola era humilhado pelos “colegas de classe” e mesmo queixando-se às suas professoras nada era feito para mudar a situação.
Seu peito doía como se fosse um balão cheio e, devido à mente prodigiosa que o acompanhava, ele era capaz de se recordar de pormenores de sua vida desde tenra idade. Cada agressão, cada palavra, cada pancada... tudo ele era capaz de recordar. Tudo o que acontecera desde seus quatro anos quando inciou-se a já finalizada maratona de visitas aos psicólogos retornava-lhe à mente como se tivessem acabado de acontecer. A angústia que sentia com essas lembranças era a mesma como quando os fatos haviam acontecido.
Os anos foram passando, o garoto franzino acumulava dia após dia as humilhações que sofria em casa, na rua e na escola. Não era feio, apenas magro e tímido, e isso parecia já ser o suficiente para que todos aproveitassem pra despejar sobre ele suas frustrações.
Chegou a adolescência. Finalmente parecia ter amigos sinceros, mas ainda assim era obrigado a conviver com aqueles que por um motivo qualquer o agrediam. Apelidos, brincadeiras de mau gosto, brigas...
O pai, mais por obrigação paterna que por desejo sincero, fez algumas tentativas de ensinar-lhe as coisas da vida, mas o garoto era questionador e o pai pouco preparado. Talvez por sentir-se humilhado o término dos ensinamentos se dava com pancadas desferidas contra aquele garoto que não aceitava as coisas sem um prévio questionamento. Ele não fazia por mal, era seu jeito, era a sua natureza, mas infelizmente o pai não compreendia isso.
As meninas por quem se interessava o desprezavam como se fosse um cão sarnento. Cartas de amor, olhares... tudo era ignorado.
O ódio dentro dele crescia mais e mais a cada dia como se nunca fosse ter fim.
Havia chegado o momento de começar a revidar, a deixar de se manter passivo diante de tanto tormento. Foi o que aconteceu.
Ao ser ofendido de alguma forma o garoto, ainda franzino, partia para cima do seu desafeto com uma fúria indescritível. Lavava sua alma espancando cruelmente os garotos.
O prazer que sentia com o olhar de medo das outras pessoas o enchiam de alegria. Preferia o olhar do medo ao olhar do desprezo e do escárnio. Temendo-o talvez o respeitassem.
Suspensões escolares passaram a ser freqüentes em virtude dos ataques que executava e surras terríveis do pai o acompanharam a partir de então. Defendia-se na escola, dos “colegas de classe”, mas não podia defender-se do pai.
Por que não?
Certa vez quando o pai, alcoolizado, desferiu-lhe um forte tapa no rosto por ele estar brigando com o irmão mais novo o revide foi inevitável e com um forte empurrão ele arremessou o pai ao chão. Uma correria sem igual se fez no pequeno apartamento e graças à presença de sua avó naquele dia ele escapou da surra. Pela presença da sogra o pai conteve sua fúria, só não era possível precisar até quando.
Mal a sogra voltara para sua terra natal o pai resolveu acertar as contas e foi até o quarto do filho que há poucos dias o enfrentara.
Estrondos e algazarra no quarto puderam ser ouvidos pelos vizinhos, pelos irmãos e pela mãe do pobre garoto e em alguns minutos o pai saiu de lá, esfarrapado.
Desde esse dia o pai parecia temê-lo e em virtude disso passou a ignorá-lo ainda mais. O olhar de receio também começou a ser-lhe dispensado por ele, o que o agradava sobremaneira.
Mesmo passando a revidar ainda havia, em algum lugar, alguém sempre disposto a tentar desfazer dele de alguma maneira. Parecia que isso jamais mudaria. Ele batia e batia e quando isso não era possível humilhava os desafetos com palavras que pareciam doer mais que qualquer pancada. Ele adorava isso pois sabia que muitas vezes a dor da alma é mais terrível que a física.
Sempre sério, normalmente sozinho, ele despertava o pavor de quem o via apenas com um olhar. Um olhar de desprezo, frio e insensível.
A vida adulta chegou e, sem os hormônios fervendo-lhe nas veias, o até então garoto passou a olhar mais pra dentro de si e tentar entender o que se passava com ele. Sabia que não era como os outros, mas não sabia dizer se isso era bom ou não.
Tímido, porém agressivo. Inteligente, porém não compreendido. Amoroso, porém desprezado nação que ele mesmo passou a entender ser fatal.
Revoltava-se com o não reconhecimento de suas capacidades na vida profissional. Irritava-se com amores platônicos que ele sabia jamais serem correspondidos. Enojava-se ao recordar-se do passado onde o pai esbanjou dinheiro sem se preocupar com o futuro acadêmico dele e dos irmãos.
Hoje estava entregue a um cargo pouco rentável e extremamente burocrático que para ele era um suplício necessário devido à falta de estudo. Tudo culpa daquele velho que jamais pensara nele ou nos irmãos, apenas em si mesmo.
O ódio em seu peito aumentava mais e mais a cada dia e onde quer que pesquisasse ele encontrava afirmações de que aquilo era prejudicial à saúde, que causava hipertensão, problemas cardíacos, stress, etc. Embora satisfeito com sua condição ele percebia que as pessoas afastavam-se dele devido ao seu jeito de ser e ele desejou mudar.
A prática de artes marciais, que todos diziam ser ótimo para acalmar os mais agressivos e nervosos apenas serviu para que ele aprendesse técnicas de como ser ainda mais letal quando agredisse seus desafetos. Foram quatro anos muito interessantes até que por problemas de saúde teve que findar os treinos. Mais revolta. Ele almejava agora ser um atleta, participar de campeonatos, mas uma lesão no joelho acabou com seus planos. Mais revolta... Ao invés de acalmá-lo a arte marcial serviu apenas como mais uma frustração em sua vida que aumentava ainda mais o poder da sua besta interior.
Mas ele queria mudar pois parecia estar cansado de tanta agressividade e ódio. Passou a ser mais tolerante, não pensar muito sobre as coisas que o desagradavam e esquecer as recordações que tanto o irritavam. Tomou calmantes leves, passou a fumar... Tudo para tentar diminuir aquele sentimento de ser uma bomba prestes a explodir.
Nos primeiros dias isso parecia dar resultado, sentia-se bem, calmo e tranqüilo. Mas ele estava enganado. Todo o ódio que ele havia trancafiado dentro de si naqueles dias somado a todas as recordações desagradáveis de sua vida surgia de uma só vez quando algo extremamente desagradável o acometeu. O estrago foi feio e por pouco seu desafeto, um rapaz que furara a fila do ônibus, não faleceu.
Ele então entendeu que não podia lutar contra seus sentimentos, que não havia como apagar as lembranças e esquecer as mágoas. Era perca de tempo lutar contra o que ele era. Era inútil tentar mudar a realidade e transformar o futuro que o destino lhe reservava. Ele tomou então uma decisão terrível.
Não mais tentaria lutar contra o que sentia e o que era. Cultivaria todo o ódio que estava aprisionado em seu peito e alimentaria a besta que havia dentro de sua mente com tudo o que estava por vir. Algum dia todos os sentimentos negativos que irradiavam de seu ser lhe seriam úteis.
Injustiças sociais, políticos inescrupulosos e toda a sorte de coisas erradas eram o alimento da sua alma: o ódio. O que as pessoas vis ignoravam, para ele soavam como coisas inadmissíveis e que não podiam permanecer impunes.
Com a morte do seu pai ele imaginou que talvez a realidade melhoraria, um personagem crucial para ele ser o que era havia sido enterrado, ele estava feliz com a morte do velho. Enganou-se novamente. A mãe, que até então havia tido apenas o pai como homem em toda sua vida agora era uma viúva alegre que ficava com qualquer um que demonstrasse algum interesse por ela. Ela não se importava com os filhos e com o que eles pensavam disso.
Fofocas dos vizinhos, sorrisos sarcásticos de tios e tias, sim, sua besta interior ainda teria muito com o que se nutrir.
Não mais revidava, não mais agredia, não mais insultava, não mais lutava por corrigir o que percebia estar errado, não mais discutia... O rapaz agora havia se entregado apenas ao cultivo do ódio que imperava em seu ser e não mais o dispensaria em pequenas doses, ele deveria ser utilizado de uma única vez, implacável, devastador e impiedoso.
Quando algo o desagradava ele mantinha-se em silêncio e apenas sua mente prodigiosa maquinava métodos sanguinários de como dar cabo do seu desafeto. Seus olhos brilhavam de ódio.
A cada dia, a cada novo acontecimento, ele sentia que sua fera interior estava mais forte e mais sedenta por sangue.
Alguém que o empurrava no ônibus, trombava com ele na rua, situações banais, eram motivos para ele sonhar com as mais diferentes formas de destruir aquela pessoa.
Os colegas de escola que o haviam agredido, os moleques na rua com quem havia brigado, os familiares que o haviam humilhado, as mulheres que havia desfeito de seus sentimentos, os antigos chefes que haviam tripudiado sobre ele... Sempre ao deitar-se para dormir sua mente desenterrava todos esses acontecimentos e ressuscitavam os sentimentos mais funestos.
Chegou um dado momento em que ao recordar-se de tudo ele chegava até mesmo a tremer. Ele transpirava, seus olhos esbugalhados evidenciavam que o nível de ódio estava praticamente no limite. A bomba estava prestes a explodir.
No dia seguinte, ao encontrar-se com a namorada, o golpe derradeiro foi dado: ela decidiu terminar o namoro. Alegou que ele era anti-social, não gostava de sair, de dançar, preferia ficar em casa, era mal humorado e etc. Não que ele não fosse tudo isso, motivos para ser assim não lhe faltavam, mas ele odiava que as pessoas jogassem-lhe na cara seus defeitos. Eles usavam seus defeitos para diminuí-lo, para humilhá-lo e para justificar o desamor que sentiam por ele.
Ele mais uma vez chorou, num primeiro momento. Sentiu-me triste e solitário. Voltou para casa e deitou-se na cama. Olhos esbugalhados, suor em abundância... Não, aquilo não ficaria assim e ela pagaria por ter desfeito de seus sentimentos, por tê-lo abandonado.
Arrumou-se novamente e saiu. Ia até a casa dela. Era a hora de a besta atacar. Impiedosa, terrível... Chegou o momento.
Seu peito parecia que ia explodir. A bomba ia explodir e seus efeitos seriam devastadores. Enquanto caminhava rumo à casa do seu mais recente desafeto ele maquinava as maneiras mais cruéis de arrasar a garota e quem quer que se pusesse em seu caminho.
Ser preso? Ele seria o líder das mais terríveis rebeliões do sistema carcerário, se é que seria preso pois ele sabia onde se esconder. Apesar de assassino, ele era inteligente e não era como a escória que ficava trancafiada nos presídios, nas favelas e até mesmo nas mansões. Ninguém jamais o encontraria e ele finalmente estaria vingado por tudo o que lhe haviam feito na vida.
Ele não era como os outros. Ele era diferente, ele era melhor.
Ele seria agora respeitado e valorizado, não como o rapaz trabalhador e bom, mas como o maníaco sanguinário que nada teme. Se não podia ser o melhor, se ninguém o valorizou enquanto lutou para ser bom, seria o pior e odiado por ser o mais nefasto dos homens.
Ao dobrar a esquina ele notou que um estranho carro estava estacionado em frente à casa da garota. Seu assombro foi ainda maior quando a viu descer dele acompanhada de um rapaz e eles trocarem apaixonados beijos.
A desgraçada o estava traindo. A besta atacaria implacavelmente. Ele, ela, e quem mais se aproximasse seriam suas vítimas. Ele acabaria com todos! Não sobraria nenhuma testemunha para usar esse fato como arma para feri-lo. Ninguém teria conhecimento da traição.
Louco, ele correu urrando como uma fera em direção do casal. Os dois olharam-no com horror. Aquele olhar que lhe dava prazer, era exatamente aquilo que ele queria. Se ela não o olhava com amor e carinho que o olhasse com horror. O medo de ser morto com pancadas, em ter o rosto desfigurado com golpes insanos, em ser aleijado por um golpe bem dado... tudo isso devia se passar pela cabeça do casal.
Quando estava a apenas alguns passos deles e pronto para iniciar o ataque ele caiu, escorregando pela calçada e esfolando todo o rosto, como uma árvore que desaba inerte.
A bomba havia explodido.
A besta saciara sua sede de sangue.
O rapaz estava morto.
Todo o ódio que por tantos anos ele represara em seu íntimo finalmente frutificara.
Um enfarto fulminante o acometera, turvara eternamente seus olhos, calara-lhe definitivamente a voz...



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