Conto - Perseguido.



Uma rua tranqüila como tantas outras daquele bairro residencial.


Cinco horas da manhã, como de costume, Renan saia de casa rumo ao seu trabalho. Abria os portões da garagem sem se preocupar com assaltos ou algo do gênero já que nada do tipo costumava acontecer naquele bairro.

Gostava de sair de casa cedo, menos trânsito ao longo do trajeto até o local onde trabalhava. Menos stress, mesmo não sendo muito agradável acordar tão cedo.
Morava naquela casa desde que nascera e conhecia todos os moradores da região, de forma que realmente não havia motivo algum para preocupação, fato raro naquela cidade grande onde a criminalidade parecia crescer mais e mais e cada dia.
Certo dia, que se iniciara como outro qualquer, Renan seguiu sua rotina, ligou o rádio do seu carro e partiu feliz para o trabalho.
A rua vazia e ainda escura lhe permitia transitar sem problema algum, e ele, cantarolando, seguia seu destino. O local era bastante peculiar: de um lado da rua havia poucas casas, praticamente chácaras, construídas em terrenos grandes e arborizados, e do outro apenas um enorme terreno tomado pelo mato que pertencia à prefeitura. O quarteirão era bastante grande e a longa rua ligava uma movimentada avenida a uma rodovia que levava ao interior do Estado e também ao centro da cidade.
A avenida estava calma naquele horário e o movimento maior se dava somente na rodovia, que era a via ser utilizada por Renan para chegar ao seu trabalho.
Cantarolando, pensando em seus afazeres naquele dia que se iniciava, Renan estranhou a luz alta que se aproximando velozmente pelo espelho retrovisor. Um fato bastante estranho pois ele não se recordava da última vez em que tivera companhia naquele horário enquanto transitava por aquela rua.
Renan apavorou-se pois a luz se aproximava em altíssima velocidade e num movimento reflexo jogou o carro para cima da calçada na esperança de escapar de uma provável colisão e por milésimos de segundo ela não ocorreu.
- Maldito desgraçado! – esbravejou ele observando um enorme carro negro ultrapassá-lo e se seguir adiante em altíssima velocidade.
Após acalmar-se o rapaz seguiu sua rotina, mas o fato não lhe saiu da cabeça. Refletiu a respeito e cogitou que teria sido útil ter anotado a placa do automóvel embora tal façanha fosse bastante improvável tanto pela escuridão da rua quanto pela velocidade em que o carro se encontrava.
- Melhor deixar pra lá, já foi, não adianta mais esquentar com isso. – decidiu Renan quando retornava à sua casa, já à noite.
Na manhã seguinte ele não se recordava mais do fato, mas ele se repetiu de uma maneira bastante misteriosa.
Ao visualizar a forte luz que velozmente se aproximava atrás dele Renan já tencionava jogar seu carro para cima da calçada quando o enorme carro negro simplesmente desapareceu na escuridão, sem ultrapassá-lo. Era como se tivesse evaporado no ar, as fortes luzes de seus faróis sumiram repentinamente.
- Mas que diabos é isso? – indagou Renan saindo do carro.
A rua estava deserta, como de costume, e não havia nenhum sinal do enorme carro negro que quase colidira com ele na manhã anterior.
Renan coçou a cabeça atônito, sem entender o que estava acontecendo. Olhou ao redor e viu apenas os poucos automóveis que transitavam ao longe na rodovia que o levaria ao seu trabalho.
Não estava louco, ele vira os faróis altos do carro negro se aproximando, assim como ocorrera na manhã anterior, mas para onde ele tinha ido? Não tinha para onde ele ir. Conhecia o único vizinho que tinha no quarteirão e ele não possuía um carro como aquele, e ainda mais, a avançada idade do homem não condizia com uma forma de dirigir tão tresloucada. Definitivamente ele não tinha idéia do que estava havendo.
Tentou pensar numa explicação, porém foi incapaz de chegar a uma conclusão plausível e resolveu seguir seu destino até mesmo porque não pretendia atrasar-se.
O ocorrido não lhe saiu da cabeça durante todo aquele dia. Renan tinha certeza de que o fato não era fruto da sua imaginação e temia estar enlouquecendo.
Pediu para sair um pouco mais cedo do trabalho. Renan pretendia resolver o enigma o quanto antes. Seu pedido foi aceito.
Chegou ao seu lar ainda sob a luz do sol e foi direto à casa do vizinho indagar-lhe a respeito da aquisição de algum carro novo.
- Ora meu filho, eu só tenho meu velho carrinho. Não comprei carro não, minha aposentadoria nem me deixa fazer isso, acabo gastando tudo com meus remédios.
A resposta do vizinho que beirava os setenta anos o deixou desconcertado pois acreditava que o carro negro pertencer a ele era a única explicação para o que estava acontecendo.
Comentou sobre o ocorrido com o pai, que assistindo ao jornal, não lhe deu muita atenção. Aliás, o pai só lhe dava a devida atenção quando o assunto estava relacionado a dinheiro, e isso irritava profundamente Renan.
Pensou sobre o assunto até ir dormir, o ocorrido havia se tornado uma obsessão para ele, e antes de pegar no sono decidiu que na próxima manhã ele descobriria a identidade do motorista do carro negro.
Cinco horas da manhã. Renan tirou seu carro da garagem, fechou o portão e ligou o rádio. Tudo sem fugir da normalidade.
- Hoje ele não escapa. – resmungou ele olhando na direção de onde o carro negro provavelmente viria. Não havia nada, apenas uma tênue névoa que desapareceria com o raiar do sol.
Entrou em seu carro e seguiu na direção da rodovia sem desgrudar os olhos do retrovisor, acreditando que a qualquer instante a luz forte surgiria como nas manhãs anteriores.
A rodovia se aproximava e a luz não surgia no seu retrovisor.
Com um misto de frustração e alívio Renan alcançou a rodovia sem que o carro negro surgisse.
- Justo hoje que eu ia dar uma lição nele, miserável. – resmungou ele acelerando.
Durante alguns dias Renan ficou atento ao retrovisor do seu carro quando saia pela manhã, mas ele era o único a transitar pela tranqüila rua, como ocorria há anos.
Os dias que se seguiram não trouxeram mais nenhuma surpresa e a normalidade havia se estabelecido na vida do pacato rapaz.
Um certo dia, quando já não se recordava mais do ocorrido, Renan seguia rumo à rodovia quando teve a vista ofuscada por uma fortíssima luz vindo contra ele.
- Meu Deus do céu!!! – gritou ele jogando seu carro para a direita e subindo na calçada para escapar de uma provável e fatal colisão frontal.
Parecia um pesadelo. Renan saltou do carro e vislumbrou, aterrorizado, o enorme carro negro se afastando em alta velocidade, para desaparecer como por encanto alguns metros adiante.
- Hoje eu te pego desgraçado, você não escapa!! – gritou ele correndo na direção em que o carro negro desaparecera e esquecendo-se do seu próprio carro.
Ao chegar ao local em que julgava ser onde o carro desaparecera, ele olhou ao redor e percebeu que não havia caminho algum para onde ele pudesse ter fugido.
- O que tá acontecendo aqui? Diabos!! – disse ele para si mesmo.
Sua cabeça fervilhava na ânsia de encontrar uma explicação para o que estava acontecendo, embora no fundo soubesse que não conseguiria isso.
Ficou alguns minutos ali parado. Sozinho envolto pelo silêncio e pela névoa ele concluiu que não havia uma explicação para o que vira.
Renan seguiu para o trabalho, mas seu dia foi péssimo. O carro negro não lhe saia da cabeça impedindo que se concentrasse em seus afazeres.
Após tantos dias ele retornara. Por quê? O que ele desejava? Quem era ele?
Não se tratava de um motorista imprudente, era algo além disso. Renan se esforçava para não cogitar a hipótese de que se tratasse de algo fantástico, sobrenatural ou algo do tipo pois nunca acreditara nesse tipo de coisa. Estava além de suas convicções. No entanto, não via outra explicação.
Acreditava estar livre daqueles acontecimentos, no entanto ele voltou a se repetir. Renan começou a temer por sua vida. Se não tivesse desviado o que teria acontecido? Uma colisão naquela velocidade seria fatal.
Renan começou a chorar e seu superior percebendo o estado do funcionário o liberou mais cedo do trabalho.
Voltou para casa, feliz por ainda estar dia, porém triste por saber que teria que sair à noite de casa na manhã seguinte. Ao contrário do que ocorrera anteriormente quando apenas a curiosidade se apossava dele, agora era o medo de que algo lhe acontecesse que invadia-lhe a alma. Não falou com ninguém, foi direto para seu quarto.
Seus pais estranharam o fato pois Renan sempre fora um filho atencioso, comunicativo e simpático e jamais agira daquela forma.
Sua mãe bateu à porta do seu quarto e ouviu como resposta apenas o desejo de ser deixado em paz. Comentara com seu pai sobre o ocorrido certa vez e fora totalmente ignorado. Temia repetir a atitude e ser tomado como louco ou ser motivo de chacota. Era melhor guardar para si aquele problema e descobrir algum meio de solucioná-lo.
Um exorcista? É, Renan estava perdendo a razão.
Mais um dia se iniciou. Cinco horas da manhã. O rapaz saiu de casa, novamente.
Renan abriu o portão e olhou para a rua deserta. Coração disparado e respiração ofegante. Nenhum movimento era percebido.
Lentamente ele retirou o carro da garagem e fechou o portão. Ligou o rádio e aumentou o volume. Talvez a música que ouvia dissipasse o medo que tomava conta de sua alma. Arrancou com seu carro cantando os pneus.
- Na rodovia o miserável não me persegue, maldito. – resmungou ele afundando o pé no acelerador.
Mas algo ainda mais aterrador o reservava naquela manhã.
Se a imagem do carro já era suficiente para atormentá-lo, o que se seguiria o levaria à loucura. Aliás, levaria qualquer um a esse estado.
Repentinamente Renan pisou no freio e o som da frenagem invadiu a madrugada até então silenciosa. Seu carro obedeceu e após poucos instante ele estava totalmente imóvel.
Logo à frente, à direita, o enorme carro negro estava estacionado. Faróis apagados. Sem sinal de motor ligado. Totalmente inerte.
Um modelo antigo, clássico, bonito e ao mesmo tempo sinistro.
- Desgraçado, hoje eu te pego. – disse Renan raivosamente descendo do seu carro.
Passos firmes que ecoavam pelo silêncio da rua deserta. Renan rapidamente se aproximou do carro negro estacionado. Ele observou que o vidro do motorista estava aberto.
- Escuta aqui seu filho da mãe... – iniciou ele ao chegar na janela. O que vislumbrou paralisou-o prontamente.
No banco do motorista um esqueleto ocupava a posição, inerte.
- O que é isso? – resmungou Renan perplexo. Olhos banhados em lágrimas, corpo trêmulo, pernas bambas...
Lentamente ele se afastou do carro negro, sem tirar os olhos dele. Pôde verificar que não havia mais ninguém dentro daquele carro que além de assustador, era belo.
O medo e a admiração, uma combinação bastante improvável mas que preenchia a mente de Renan.
Um esqueleto...
Seu coração disparou ainda mais e seu corpo entrou em colapso. Diante da visão aterradora do carro negro arrancando em alta velocidade, como sempre acontecia, e desaparecendo na escuridão da rua deserta logo à frente, Renan perdeu os sentidos.
O pacato bairro foi acordado pelo som da sirene da ambulância que viera socorrer um rapaz que havia sido fatalmente atropelado. Renan.
- Seu guarda, ele tava deitado na rua, no escuro, eu só percebi que atropelei ele quando senti o solavanco do carro, não deu pra fazer nada... – foi a explicação dada pelo motorista que tirara a vida do atormentado rapaz.



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