Conto - O Condenado.



Amaldiçoo minhas pernas por não terem sido capazes de me libertar daqueles guardas sanguinários.


Guardas raivosos buscando um culpado sem se preocupar se aquele que perseguiam era ou não inocente. Não, não os amaldiçoo, afinal compreendo a raiva que nutria seus corações uma vez que esse mesmo sentimento por diversas vezes já inundou o meu. Impossível não ser tomado pela ira quando um ente querido seu é morto de maneira tão horrenda como ocorreu com aquela jovem mulher. Aquela jovem, a esposa do governador que trazia em seu ventre o seu primogênito. Ambos debaixo de sete palmos de terra a essa hora.

Definhando lentamente naquela cela fria já a dois dias sem alimento ou água eu remoí aqueles últimos instantes na mata e conjecturei as inúmeras maneiras que me teriam permitido estar distante dali naquele momento. Pernas fracas... pernas de aleijado... malditas pernas... De que me adiantava pensar naquilo estando naquela situação? Nada mais adiantava, apenas aguardar o momento da minha partida. 


Não, por mais que eu tenha jurado, ninguém acreditou em minhas palavras. Por mais que eu tenha negado a autoria de tão insana atrocidade não houve uma só alma naquele tribunal que tivesse sido capaz de me dar ouvidos. Não, não fui eu quem tirou a vida daquela mulher e de seu filho. Mas havia de existir um culpado. A honra da guarda estava em jogo e o assassino devia ser encontrado a qualquer preço. Um aldeão sujo e desiludido da vida: o bode expiatório perfeito. A guarda manteria sua reputação diante de todos. O governador se sentiria vingado pela morte da esposa e do filho. O caso seria encerrado quando a última pá de terra fosse jogada sobre o corpo enrijecido enclausurado no fundo de uma cova... 


Enquanto ouço o toque dos sinos indicando o derradeiro momento eu não sinto medo, apenas ódio. Não por não crerem em mim pois eu conhecia a minha verdade e isso já me bastava, mas sim por não terem investigado o assassinato de minha mãe com o mesmo empenho quando se deu o ocorrido. Não sou governador e não pertenço à política. Sou um mero aldeão e por esse motivo a morte da minha honrada mãe não teve importância para quem quer que fosse. Uma morte tão ou até mesmo mais brutal que a daquela jovem e seu filho. À doze anos, uma senhora septuagenária encontrada empalada por uma vassoura. 


Tudo indicava horas e horas de sofrimento atroz antes do último espasmo ocorrer. Quem se importou? O Grande Pai protegeu-a em seus braços daquele monstro que tripudiara sobre seu corpo vendo-a definhar lentamente? Onde estava ele naquele momento? Estaria ele presenciando as atrocidades sexuais que os cônegos cometem dia e noite nos mausoléus que chamam de mosteiros e igrejas? Estaria o grande Criador se deleitando com tais atos assim como o fizera na ocasião da morte de minha mãe? Ouço passos se aproximando apressadamente e por um instante tenho a impressão de ver o vulto terrível da encapuzada cruzar defronte minha cela. Ela aguarda a libertação da minha alma para arrastá-la aos confins do além. O sino já sentenciou: é chegada minha hora. Ao contrário do que sempre imaginei, não senti medo, mas sim ansiedade. Ansiedade por saber se, estando eu do outro lado da realidade, meu espírito estaria liberto de tudo aquilo que até aquele momento me atormentava. Sem palavra alguma fui retirado da fria e úmida cela e encaminhado para o pátio. O olhar de repúdio e asco daqueles homens penetraram em minha pele como uma lança sem fio. Sou a escória, sou o lixo da sociedade, sou um tumor prestes a ser extirpado... 


A multidão enfurecida clama pela minha morte: o monstro deve morrer. Não eu, mas sim aquele que tão terrivelmente tirou a vida daqueles inocentes. Um monstro e não eu, um mero aldeão. Assassinar aquela jovem, arrancar-lhe do ventre seu filho e fazê-la engolí-lo... causa-me ânsia só em imaginar tal cena. Por que eu? Não sei dizer. Talvez por não haver na Terra quem chore pela minha morte. Um aldeão solitário cuja morte não importará à ninguém, assim como a da minha mãe pouco importou. Ao ouvir os urros enfurecidos dos guardas se aproximando de minha humilde moradia algo cochichou em meu ouvido alertando-me que escapasse dali pois corria perigo. Seria minha finada mãe? Assim o fiz, embora tardiamente. Enquanto seguia rumo à forca encarei a multidão que se acotovelava próxima de mim. Os guardas evitavam que eu fosse agredido embora era evidente em seus olhos que a vontade deles era a de me ver ser devorado vivo por aquelas pessoas. Identificar o olhar do verdadeiro assassino talvez traria alguma paz ao meu coração. Ele certamente estava entre aquelas pessoas que gritavam ensandecidas para certificar-se que o acusado pelas mortes que causou cumpriria a sentença que à ele cabia. Nada. Somente gritos. O sentimento parecia o mesmo nos olhos de todos aqueles que clamavam pela minha morte: o ódio. Subí os degraus de madeira e logo a grossa e áspera corda foi posicionada em meu pescoço. 


Não esperava salvação alguma, já fazia bastante tempo que não mais acreditava em justiça divina. Que viesse logo a encapuzada buscar-me para que eu fosse de encontro às almas que vagam pelo além. Talvez lá eu conhecesse a paz. Retribuí o olhar transbordando ódio àqueles insanos sádicos que, como chacais sobre a carniça, ansiavam pelo meu corpo balançando inerte. Alguém leu minha sentença e o que a motivou. Eu sequer desviei os olhos na direção da voz. Pouco me importava quem lia aquelas mentiras. Ainda procurei na multidão aquele que, caso a tão mencionada justiça divina existisse, estaria em meu lugar naquele instante. Um estranho silêncio se fez, como se o mundo estacionasse. Mas as pessoas ainda gritavam e gesticulavam. Não ouvia mais nada... teria eu já morrido? O mais profundo silêncio que presenciei, mesmo que por alguns breves segundos é findado e, ao ouvir o estalo do alçapão abrindo-se sob meus pés, um lampejo de memória me fez entender tudo: minha busca estava sendo em vão. Eu jamais encontraria na multidão o autor das mortes pois ele estava naquele momento com a corda amarrada em seu pescoço. Eu era o monstro. Sempre fui e sempre serei, apenas não sabia disso ainda. Como uma besta enfurecida tirei a vida daquela jovem após possuir seu corpo alvo e macio. Empurrei-lhe o filho garganta abaixo para fazê-la calar-se enquanto estocava meu órgão fortemente naquele corpo banhado de sangue e sofrimento. 


O sangue e o sofrimento: o gozo sublime, o prazer inigualável. Um monstro. Uma lágrima escorreu furtiva dos meus olhos. Não pela morte da jovem e de seu filho, mas por recordar-me que, também havia sido eu mesmo o assassino de minha mãe. Um rompante de fúria sem propósito, o primeiro de inúmeros que se seguiram. Sem razão de ser, sem controle, seu porquê. A justiça pode tardar, porém um dia ela chega, ainda que nos conscientizemos disso em nosso último segundo de vida. Aquele à quem proferi os piores impropérios pela morte de minha mãe mostrou naquele momento que Sua justiça se faz presente sem nunca falhar. Ainda que Ele nos esfregue isso na cara em nosso derradeiro momento fazendo com que nos sintamos ainda piores do que nos sentimos ao longo de nossas vidas. Toda a verdade fora revelada, porém, não havia mais nada a ser feito. Antes de ouvir o som do meu pescoço se partindo ainda tive tempo de gritar clamando aos céus: “Bendito Seja Seu Nome”. Atônita, a multidão repetiu em uníssono as minhas palavras.


Inspirado na introdução da música Hallowed Be Thy Name da banda inglesa Iron Maiden: “I'm waiting in my cold cell, when the bell begins to chime. Reflecting on my past life and it doesn't have much time. 'Cause at 5 o'clock they'll take me to the Gallows pole, The sands of time for me are running low.”


Tradução. Bendito Seja Seu Nome.

“Estou esperando em minha cela fria, quando o sino começa a tocar. Reflito sobre minha vida passada, não tenho muito tempo. Pois às 5 em ponto eles me levarão para a forca, As areias do tempo para mim estão acabando.”



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