Conto - A Cilada.



Após alguns anos estudando na capital finalmente Orlando retornara ao lar em que nascera. Já formado em agronomia seu objetivo agora era cuidar da bela fazenda fundada pelo pai e também fazer-lhe companhia.


Desde o falecimento de sua esposa, há dois anos, o Sr. Maciel parecia definhar a cada dia. A vida parecia ter perdido o sentido e ele seguia dia após dia como um fantasma a perambular por sua bela e gigantesca propriedade absorto em sua lembranças.
Alguns funcionários mais antigos se esforçavam para que o trabalho de toda uma vida não se perdesse e foi com muita alegria que receberam Orlando de volta à fazenda, agora ela estava novamente em boas mãos.

Sr. Maciel sempre cuidou minuciosamente de cada detalhe e obrigava cada funcionário a deixá-lo sempre a par de qualquer problema que ocorresse na propriedade. Desde o falecimento da esposa, vítima de um câncer fulminante que arrasou com ela em questão de poucos meses em meio a dores atrozes, seu interesse por esses assuntos foi diminuindo e se não fosse a dedicação daqueles que eram muito mais que funcionários, eram seus amigos, ela estaria em estado deplorável.
Orlando estava disposto a empregar todo seu conhecimento para modernizar a fazenda e fazer dela a mais próspera da região como fora outrora.
Como era de costume pai e filho, à noitinha, colocavam a conversa em dia.
- Bernabeu me disse que tem algum animal atacando o gado meu pai, o que acha que devemos fazer em relação a isso?
- Deixe o pobre bicho Orlando, ele apenas deve estar com fome. – respondeu o velho baforando seu cigarro sem sequer olhar para ele.
- Mas pai, ele tem matado várias cabeças, estamos tendo prejuízo, precisamos fazer alguma coisa, as coisas não podem ficar assim.
- Que prejuízo filho? Temos centenas de cabeças, uma a mais ou uma a menos não faz diferença pra gente não.
- Olha meu pai, o senhor me desculpe, mas não vou deixar isso assim não, amanhã mesmo vou organizar a peonada e vamos montar uma tocaia pra pegar esse bicho. Nossos bois ele não vai comer mais não... – retrucou o jovem, visivelmente irritado com a displicência do pai.
- Mas pra quê filho? Deixa o bicho ora essa, temos muito gado, deixe o pobre bicho...
- Olha pai, se o senhor não está mais disposto a zelar pela propriedade, eu entendo, mas eu estou e vou fazer o que estiver ao meu alcance para que ela seja a fazenda mais rentável de toda essa região. Esse animal não come mais nenhum boi do nosso pasto não. – concluiu Orlando retirando-se nervosamente da sala.
O pai pouco se importava com a morte periódica de cabeças de gado que ocorriam na fazenda, os funcionários lhe comunicavam o fato, mas ele ouvis tudo sem nada dizer. Parecia não se importar com a situação que já perdurava há alguns meses.
Haviam casos o animal simplesmente desaparecia, em outros, era encontrado às redondezas da propriedade com terríveis marcas. O que causava mais estranheza era que os animais que eram encontrados pareciam ter sido simplesmente mortos por alguma criatura selvagem, mas não comidos por ele, e todos se perguntavam assombrados sobre que tipo de animal faria aquilo.
A decisão tomada pelo filho o preocupara razoavelmente pois tinha um mau pressentimento em relação àquilo. O impulsivo rapaz era a única família que possuía e a idéia de perdê-lo o atormentava.
Orlando, ao saber de tais ocorrências já havia tomado a decisão de caçar a criatura e diante do desleixo de seu pai ele se conscientizou de que, definitivamente, ele não estava mais pleno de suas faculdades mentais. A morte de sua mãe o havia abalado irremediavelmente.
- Por um lado isso é bom pois agora posso tomar as decisões que bem quiser sobre os negócios da família, não tenho mais que dar satisfação alguma pro velho. – pensava ele com um sorriso malicioso nos lábios.
No dia seguinte, logo pela manhã, Orlando reuniu a peonada e comunicou a todos sobre o que tinham a fazer. Pediu sugestões aos mais experientes e ficou decidido que armariam uma cilada para a fera que atacava o gado da fazenda.
Próxima à ela havia uma pequena clareira e ali eles amarrariam um novilho deixando próximo à ele algumas carcaças para atrair a fera através do olfato. Na mata ao redor ficariam eles, armados, à espreita.
Já fazia quase um mês que não ocorriam ataques e eles concordaram que a caçada deveria ocorrer o quanto antes pois provavelmente a fera estava por atacar mais uma vez.
Tudo combinado, ficou decidido que a caçada se daria naquela mesma noite.
Orlando, que desde moleque gostava de caçar, mal podia esconder a excitação pelo que fariam à noite e correu ao seu quarto para verificar se seu rifle estava em condições de uso. Mesmo após anos de dormência, a arma estava ok.
Cruzou com o pai algumas vezes ao longo do dia, mas sabendo da sua opinião a respeito do assunto, não lhe disse nada. Afinal ele nem precisava saber até mesmo porque ele não se importava com mais nada.
Mas Sr. Maciel conhecia o filho e prevendo o que estava por acontecer foi falar com o velho Bernabeu sobre o que estavam por fazer.
- Você sabe que isso é perigoso não é velho Bernabeu?
- Sim Seu Maciel, sei sim, mas tá na hora de dá cabo desse bicho. Os peão memo já tão com medo dele. O bicho não come os boi Seu Maciel, ele só mata, destroça os pobre, e isso num é certo. Se fosse por fome nóis entendia, mas parece que é por maldadi.
- Entendo Bernabeu, você tem razão. Melhor dar um jeito nisso antes que alguém da fazenda, fora os animais, se machuque. Mas prometa uma coisa meu amigo: cuide do meu filho, ele é a única família que me resta agora.
- Num se preocupa não Seu Maciel, tenho muito carinho por esse moleque, vô cuida dele como se fosse meu filho, fica tranqüilo.
Anoiteceu, os peões já tinham escolhido o novilho que serviria de isca e também providenciado a carcaça a ser usada. Por volta das vinte horas todos se reuniram distante da casa principal para que Sr. Maciel não soubesse de nada e logo se encaminharam até a clareira onde tudo se daria.
Sr. Maciel se recolheu fingindo não saber de nada. Sabia que nada do que dissesse seria capaz de fazer o filho desistir daquela caçada.
Bernabeu comandou a operação e Orlando, agarrado à seu rifle com um brilho diabólico nos olhos, obedecia à todas as ordens assim como os peões. Ele sentia um prazer mórbido em ouvir o som da caçada: os ossos se partindo e da carne sendo dilacerada com o impacto do projétil de grosso calibre que usava. Já havia algum tempo, desde que fora para a capital estudar, que não tinha tal prazer e sentia saudade disso tudo.
Logo o novilho estava amarrado à uma estaca presa ao chão no centro da clareira com pedaços de boi jogados ao seu redor. Os homens, por volta de doze, estavam escondidos no mato que cercava a pequena clareira, todos do lado direito, o mais próximo à fazenda, deixando o lado oposto livre para a chegada da fera que provavelmente viria da mata próxima.
O luar que penetrava por entre as árvores contrastava com a leve névoa que encobria a mata fria dando ao cenário da caçada um ar de mistério.
As horas passavam e todos se mantinham em silêncio. A temperatura baixava cada vez mais fazendo com que pés e mãos aos poucos ficassem dormentes. Qualquer ruído poderia denunciar a presença dos caçadores e pôr a perder todo o plano que havia sido articulado, o silêncio era absoluto.
Alguns peões cochilavam envoltos pela escuridão. Bernabeu se atrevia a fumar seu cigarro mesmo sabendo que aquilo poderia afugentar a fera, mas era o único modo de esquentar os pulmões e fazer com que as horas passassem mais rápido. Orlando, ao lado dele, aguardava algum sinal da fera, ouvia o silêncio.
Ele se recordava das noites de caçada em que acompanhado pelo pai e também por Bernabeu traziam diversos troféus para casa. Eram tempos felizes e ali, sentado na mata gelada, ele se recordava deles. Lobos-guarás, onças, suçuaranas, capivaras, veados... a lista de vítimas era longa e seu coração acelerava ao se recordar das inúmeras caçadas.
Mas Orlando desperta de suas lembranças com o companheiro lhe cutucando o joelho. Com um gesto Bernabeu lhe pede que fique em silêncio e aponta em direção ao lado oposto da clareira, como sempre fazia quando saiam para caçar.
Orlando segurou firme seu rifle pois sabia que havia a possibilidade de fazer uso dele a qualquer momento.
Do outro lado da clareira a mata balançava de forma quase imperceptível, mas Bernabeu, caçador experiente, já havia jogado fora o cigarro e mirava firmemente naquela direção.
Um peão se encarregou de alertar, e em alguns casos de despertar, o companheiro ao lado e logo diversos rifles apontavam na direção em que a mata balançava.
Foram instantes que se pareceram com horas. O nervoso suor quente escorria pelo rosto frio de Orlando que mal piscava. A respiração pesada formava fumaça, como se Orlando também fumasse. O frio castigava à todos.
De repente algo correu do meio da mata em direção ao novilho. Parecia um raio de tão rápido, mas sua velocidade não foi capaz de salva-la da saraivada de disparos que foram dados contra ela. Em poucos instantes a criatura já estava morta próximo ao novilho apavorado com os estampidos.
Bernabeu e Orlando finalmente abandonaram seus postos e foram na direção da criatura. Logo identificaram o animal como sendo uma suçuarana. O restante dos homens, de pé, mas sem abandonar suas posições, observavam tudo atentamente.
“Uma suçuarana... Mas por que ela não comia o que caçava?” – pensou Orlando olhando o animal crivado de balas a seus pés.
“Aquelas marca, não era de onça-parda não, diacho.” – refletia Bernabeu.
Embora a fera tivesse sido abatida facilmente a caçada ainda não havia terminado e o horror que percorreu a espinha de todos os homens ali presentes provou isso.
De trás dos peões, da direção da fazenda, uma enorme criatura saltou sobre alguns deles emitindo um urro medonho. Era como se ela tivesse saltado de cima das árvores.
Os gritos de dor dos homens atingidos ecoaram pela floresta e fizeram com que Bernabeu e Orlando corressem para o outro lado da clareira, indo abrigar-se na mata.
Diversos disparos se sucederam na tentativa de abater a criatura, mas o luar não era forte o suficiente para tornar a fera um alvo visível.
- O que tá acontecendo Bernabeu? – gritou Orlando desesperado.
- Fica carmo Orlando, não sai de perto de mim. Fica aqui. – disse nervosamente o velho puxando-o para o meio do mato.
Os peões estavam perdidos e não sabiam em que direção deviam disparar suas armas pois temiam atingir uns aos outros de forma que eram obrigados a aguardar um contato visual com a criatura para poder atacá-la.
Com uma tática torturante a criatura pausava seu ataque fazendo com que apenas o gemido dos homens feridos pudessem ser ouvidos e de forma inesperada prosseguia atacando outros alvos. Urros e grunhidos. Mais disparos e mais gritos.
Num dado momento um dos peões correu desesperado para o meio da clareira na ânsia de fugir. Era a oportunidade que Bernabeu aguardava.
A fera sedenta de sangue foi atrás dele e sem a mata para lhe servir de proteção tornou-se um alvo fácil.
- Meu Deus, o que é aquilo? – gritou Orlando aterrorizado.
- Atira Orlando, atira!!! – gritou Bernabeu já desferindo o primeiro disparo.
Infelizmente esse disparo atingiu o pobre peão que foi arremessado para trás com o impacto do projétil. No meio da clareira iluminada pelo luar era possível ver a fera em detalhes: tinha o tamanho de um homem mas era mais robusta, peluda, com orelhas enormes saltando-lhe da cabeça e um focinho grande como o de um cão. O luar fazia com que suas garras e suas presas reluzissem como metal. Seu olhar era diabólico, transbordava ódio, raiva e selvageria.
Ela pareceu ficar desnorteada ao ver o corpo do peão baleado ao seus pés e cessou a correria olhando ao redor, confusa. Foi o instante em que Bernabeu e Orlando desferiram os disparos que lhe atingiram o peito.
A fera caiu no chão mas ainda teve forças para se levantar e, cambaleando, correr para o meio da mata.
Os peões que sobreviveram ao ataque já haviam fugido aterrorizados assim que a fera adentrara a clareira. Agora só restavam Bernabeu e Orlando contra a fera.
Na ânsia de dar cabo da criatura eles corajosamente correram atrás dela embrenhando-se na mata.
- Me segue Orlando, vem comigo! – disse Bernabeu sem pestanejar.
A correria se deu por quase dois minutos até que Bernabeu estacionou, no que foi imitado pelo rapaz que o seguia.
Encostado à uma árvore a criatura agonizava, rosnando dolorosamente. Ela parecia já não ter a aparência tão animalesca como há alguns minutos atrás, parecia mais humana.
Bernabeu, apontando-lhe a arma, se aproximou lentamente. Os olhos arregalados pareciam não acreditar no que viam e logo eles se encheram de lágrimas.
Orlando parecia não entender o que estava acontecendo. Temia que a fera, mesmo ferida, partisse para cima deles a qualquer instante. Mas ele pareceu não acreditar no que seus olhos lhe revelavam.
Logo as armas se baixaram e os dois homens, chorando, se ajoelharam ao lado do homem que agonizava encostado à árvore.
Em meio à difícil respiração, engasgando com o sangue que lhe brotava da garganta, eles puderam ouvir as últimas palavras daquele homem que tombava morto:
- Eu lhe pedi para deixar a criatura em paz meu filho, por que não me obedeceu?



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