Conto - Derradeira Visita.



Com um forte salto dado por aquele até então inerte corpo a frágil cama do hospital foi sacolejada. Era como um choque elétrico fazendo-o saltar e trazendo-o à vida.


Em estado de coma já há seis meses os médicos não acreditavam em sua recuperação embora a abastada família relutasse em desligar os aparelhos que ainda o mantinham vivo, mesmo sem sequer visitá-lo.
Vivo talvez não fosse a palavra correta a ser empregada no caso de Manuel. Seu corpo inerte tinha seu coração e pulmões funcionando graças à aparelhagem a qual estavam ligados. Exames indicavam que seu cérebro já não possuía vida. Haveria ainda algum espírito habitando aquela carcaça inerte?
Agora sentado naquela cama Manuel via seu corpo todo ligado a fios e sensores que faziam-no aparentar uma criatura de laboratório, um Frankenstein ou algo do tipo. Mas aquela era a menor das preocupações que ele tinha. Seu olhar estático estava direcionado aos pés da cama e mesmo que houvesse alguém no isolado quarto para presenciar a cena não poderia enxergar aquilo que o moribundo, horrorizado, enxergava.
Era ela. Impassível, agachada aos seus pés como uma ave de rapina espreitando sua presa, seus olhos demoníacos injetados dentro dos seus. Capuz negro tornando o branco da sua face ainda mais aterrorizante e cobrindo todo o restante de seu corpo como um sobretudo de escuridão. Era ela, aquela que todos temiam encarar...
Até então aquilo que fora uma lenda, um mito, uma mera crendice, agora se materializava diante dele. Ela era real.
Manuel tentou balbuciar alguma coisa, mas seu horror aumentou ainda mais quando, num salto, a medonha criatura veio repousar agachada sobre seu peito, fazendo-o novamente deitar-se na cama com o impacto do seu corpo frio e fétido contra o dele.
Lentamente ela levou seu rosto próximo ao dele como se os olhos de Manuel fossem o caminho direto para dentro de sua alma. Nenhuma palavra, nenhum grunhido, nada... Apenas o silêncio absoluto que anuncia um provável acontecimento terrível.
Era como se o universo estivesse congelado à espera do desfecho daquilo tudo.
O corpo do homem recém-desperto estava congelado pelo medo. Talvez mantendo-se imóvel ela o poupasse, mas seu estômago revirava com o odor indescritivelmente nauseante do hálito daquela criatura que tinha o rosto quase colado ao seu.
Manuel tentava virar seu rosto para o lado e escapar daquele hálito nojento mas o olhar daquela besta parecia hipnotizá-lo, impedindo-o de executar tal ação.
Não havia lábios, não havia órbita, não havia nariz... Apenas fendas que caracterizavam um esqueleto humano que talvez algum dia fora como o dele. Parecia uma máscara, imóvel, sem expressar nada, apenas com o sorriso contrastando com o ódio do olhar...
Reagir? Tal hipótese estava infinitamente distante de ser boa e Manuel percebeu isso quando, com o canto dos olhos, viu a reluzente foice que a criatura trazia na mão direita. Ela brilhava com as tênues luzes do quarto, ameaçadoramente, mesmo estando imóvel, assim como aquela que a empunhava.
Só lhe restava aguardar o desfecho daquela funesta visita, nada mais podia ser feito, isso era fato.
Num dado momento todo o horror que inundava a alma de Manuel desapareceu. Sua mente, como um prodigioso filme em velocidade extremamente acelerada, começou a passar diante de seus olhos todos os acontecimentos de sua vida durante aqueles quase sessenta anos de existência.
Sua infância modesta, com suas alegrias e traumas, as brincadeiras, as surras, os aniversários, o doce sorriso da mãe, o olhar severo do pai, a concorrência dos irmãos... A adolescência, com seus sonhos e dissabores, a primeira namorada, as noites de estudo, os bailes, novas surras, dessa vez de desafetos escolares, as juras de vingança... A vida adulta, com muito trabalho e rápido enriquecimento, as inúmeras namoradas, o primeiro encontro com aquela que se tornou sua esposa, seu casamento, o nascimento dos filhos, o falecimento de seus pais, o rompimento com os irmãos e o resto da família, as amantes, as atitudes pouco louváveis em prol do aumento de seus bens materiais, as bebedeiras, as viagens, o nascimento dos netos, a descoberta da doença, a impossibilidade de cura mesmo que empregando o uso de todo o recurso financeiro de que dispunha, a dor indescritível lancinando seu cérebro, o hospital...
Sua vista então escureceu como se agora devessem subir os créditos de um filme que terminava. Logo surgiu novamente aquele rosto maquiavélico que parecia ter assistido à retrospectiva da sua vida junto com ele.
Seus dentes sempre à mostra pareciam sorrir, mesmo com a expressão séria que sua fronte e órbitas transmitiam. O que se passaria dentro dela? Manuel não teve tempo para refletir a respeito pois sua alma inundara-se novamente, mas dessa vez não era mais de medo.
Lágrimas escorreram dos olhos de Manuel. Seu peito pareceu ficar pequeno. O remorso pelos erros que cometera durante sua vida parecia sufocá-lo, ou seria o peso da criatura sobre seu peito que lhe causava esse mal estar?
As amantes lascivas com as quais se deitara enquanto a esposa cuidava dos filhos pequenos em casa... As inúmeras carreiras que havia destruído ao longo da sua vida profissional para atingir o posto que atingiu... O descaso com o qual tratara seus filhos ao longo de suas vidas acreditando que abastecê-los de dinheiro e satisfazer suas sórdidas vontades fossem o suficiente para cumprir seu papel de pai... Sua família para a qual virara as costas assim que obteve uma vida financeiramente mais confortável somente pra evitar que lhe pedissem alguma coisa no caso de necessidade... Os abortos que obrigara as amantes a realizar em nome de sua reputação...
Manuel desejava mais do que nunca poder falar com todos eles. Desculpar-se por todas as atitudes desumanas que tivera ao longo da sua vida em que jamais pensara em mais nada além de si mesmo. Pedir-lhes perdão...
Rezar? Durante toda sua vida podia contar nos dedos às vezes que fizera isso, todas por imposição de seu pai, católico fervoroso que já havia se encontrado há muitos anos com aquela criatura que estava agora diante dele. Deus não o ouviria...
Contentou-se em dar um profundo suspiro e fechar seus olhos. Acontecesse o que acontecesse, ele nada poderia fazer para mudar aquilo que havia feito ao longo de sua vida. Nada poderia mudar o fato de a encapuzada estar visitando-o naquele momento.
Ele ouviu apenas o som surdo daquele ser terrível pousando no chão ao lado da sua cama, o odor fétido que o corpo dela exalava diminuiu, mas o peso no peito permanecera indicando que realmente era culpa o que o sufocava e não o peso da criatura.
Em seguida um zunido infindável preencheu-lhe os ouvidos. Pensou em abrir os olhos, mas teve medo do que pudesse ver...
Não houve dor, as luzes apenas se apagaram e o corpo de Manuel descansou para que sua alma perturbada cruzasse os portões da morte...




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