Conto - Corpo Seco.






-Preciso desligar agora, garanhão. - Miriam sussurrou, fechando o decote por onde se tocava.


-Por quê? - a voz grossa e ofegante do outro lado perguntou.


-Minha filha chegou.

-Tranca a porta... não pára...

-Não, aqui tem extensão. E o telefone sem-fio deve estar no banheiro, a menina sempre deixa lá.

-Ah, claro. Desliga e vai lá fingir pra piveta que é uma dona de casa exemplar. Se ela soubesse que de santa você não tem nada...

-Quieto. Sempre fica assim chato quando te deixo na mão?

-Estou na mão mesmo. Mas vou descontar tudo quando te pegar, sua...

-MAMÃE?

-Tchau, a gente se fala mais tarde. - desligou, abrindo a porta do quarto - Estou aqui, querida!

A menina fingiu não reparar no cabelo desarrumado nem na saia amassada entre as pernas da mãe. Não era a primeira vez mesmo. "Tenho lição de matemática, me ajuda?"

-Peça pro Cláudio quando ele chegar. Estou ocupada agora.

-Ocupada. Sei.

-O que tá resmungando aí?

-Nada. Nada mesmo.

Cláudio é o padrasto da menina Paula. Forte, desajeitado, viciado em álcool, drogas e mulheres, mas compreensível e prestativo com tudo relativo à "Paulinha", que é como chama sua enteada. Apesar de truculento, é dono de uma inteligência quase diabólica, e seria alguém na vida se não fossem os vícios e outras falhas em seu caráter. Mais dia menos dia Cláudio deixará Miriam para deflorar a filha, pois além dos olhares maldosos costuma esquecer de fechar a porta do quarto para transar com a mãe.

Miriam, por sua vez, tornou-se mãe logo aos 14 anos, resultado de uma aventura com um desconhecido, e ainda hoje é uma mulher fogosa e inconseqüente. Tornou-se uma ninfomaníaca na internet e viciada em sexo, tanto ao vivo quanto por telefone. Quantas vezes não ligou para desconhecidos aleatoriamente, aproveitando o curto espaço de tempo do banho de Cláudio?

Paulinha, por esses detalhes sórdidos, não gosta dela. Passa todo o tempo que pode na casa de sua avó, a sofrida mãe de Miriam. Sua avó detesta Cláudio, apenas tolera o "safado" por que ele tem "aquietado o facho" de sua filha. Com esse cenário familiar, Paula desde cedo conheceu o ato sexual, mas de maneira suja e distorcida. Talvez isso explique a enorme atração que sente por Cláudio. Gosta de verdade do safado. Ele poderia se tornar a figura paterna que ela nunca teve. Poderia...

Certa noite Miriam demorou mais que o normal para voltar pra casa. Paula, em sua pré-adolescência, já se virava sozinha nessas horas. Preparou um belo jantar mesmo sabendo que ninguém repararia em seu gesto. Cláudio chegou primeiro, e esperou por Miriam pacientemente, com um brilho esquisito no olhar. Devia ter descoberto algo. Quando a mulher chegou, trancaram-se no quarto. A imagem que Paulinha guardou daquela noite foi Miriam de olho roxo, sorrindo com a boca escancarada, cheia de sangue por causa do dente quebrado e da gengiva cortada, desafiando Cláudio:

-Um dia eu ainda te mato.

-Se me matar, pode ter certeza que morre junto. E de um jeito bem pior! - ele retrucou.

Algumas noites depois Cláudio chegou de madrugada. Miriam já tinha ido dormir há tempos, diferente de Paula. A menina se assustou quando a porta de seu quarto abriu, mas reconheceu a silhueta que apareceu cambaleando de maneira provocativa e perigosa. Ela ergueu o lençol até cobrir o rosto. Um cheiro forte invadiu seu quarto. Paulinha não sabia - meses depois ela ainda se esfregaria no banho - mas aquele odor nunca mais sairia de seu corpo, nem de sua consciência. O que aconteceu por baixo daquele lençol primeiro foi molhado e quente, depois muito, muito dolorido, tanto que seu corpo juvenil nem teve como se defender. Aquilo continuou acontecendo por alguns instantes, até que ela escutou um estrondo! Outra silhueta estava parada contra a luz que vinha de fora, com uma arma fumegante nas mãos. O sangue de Cláudio escorria por todo o lençol...

Miriam disse na delegacia que tudo fora um acidente, que pensou tratar-se de um assaltante e estuprador. Mostrou o porte de arma do falecido e as manchas de esperma no lençol da filha. Assim ficou fácil, e o caso foi resolvido. Menos na cabecinha de Paula; afinal ela nem sabia que tinham uma arma em casa.

O enterro de Cláudio foi um massacre, visto que ele não tinha família. Quando o padre rezou “do pó vieste, ao pó retornarás”, a mãe de Miriam se descontrolou e soltou o verbo, amaldiçoando o defunto em voz alta:

-Você maldito, nem a terra há de comer!! Você é tão ruim que a natureza vai recusar sua carcaça, nem os "pássaro agourento" vão passar perto! - a velha ainda cuspiu na sepultura.

Estranhamente, a única pessoa presente que lamentava a morte de Cláudio era Paula. Em sua recém-perdida inocência, a menina esperava que ele soubesse disso, onde quer que estivesse. Sabia que daquele momento em diante seria atormentada pela própria mãe, pelo fato de ter despertado interesse sexual no padrasto...
***

A menina-moça não gostava mais que a chamassem de Paulinha. Os meses se passaram desde a perda de sua virgindade, mas aquele cheiro não desaparecia nunca. Até que numa noite um odor muito pior entrou no quarto. Paula dessa vez cobriu até a cabeça com o lençol, que ainda era da Hello Kitty. Fechou os olhos com tanta força que lacrimejaram. Sentiu aquilo de novo, mas agora era diferente. Não doía - era até gostosinho! - mesmo assim não quis descer o lençol para ver de quem era aquela língua.


-É você? - ela arriscou choramingar.

Mas a língua não parou de lamber, de explorar, de invadir... Paulinha demoraria alguns anos pra saber o que de fato estava sentindo. Depois de terminada aquela sensação gostosa, ela tentou puxar conversa novamente:

-Me conta uma estória?

-Claro. - ao menos a voz ainda era a mesma - Quer saber como é do outro lado?

-Você viu o túnel de luz?

-Sim, Paulinha.

-Então viu anjos?

-Corta essa. - a coisa escarneceu no escuro do quarto - Não tenho religião. O túnel de luz que vi sei bem o que era. Chama-se falta de oxigenação do cérebro. Temos mais células no centro dos olhos do que nos cantos, sabia? Por isso não enxergamos direito coisas que passam de relance. Essas células do centro são ativadas de maneira estranha na hora da morte, pela falta de oxigênio, causando essa ilusão de túnel.

-Você é tão inteligente.

-Assisti na tv a cabo que a velocidade dos caças acidentalmente geram apagões cerebrais nos pilotos da Força Aérea. Nesses momentos eles também sofrem a mesma ilusão.

-Então você não morreu?

-Morri. Três vezes. Depois do tiro e do meu enterro, acordei e novamente me levantei. Quando vi o estado do meu corpo, me joguei na frente de um carro. Também tentei me afogar no lago, mas sempre acordo depois. Meu corpo é expelido da sepultura, a própria terra rejeita minha carne. E agora ando somente à noite para esconder meu aspecto.

-Foi a vó! Ela te amaldiçoôu! E depois ela me disse que você é coisa tão ruim que nem o lobo atacaria, que sua carne é tão podre que pode mexer nas abelhas sem ser picado.

-Sua avó... Diga a ela que também posso dormir no chão sem as formigas mexerem comigo. Onde está Miriam?

-Minha mãe sempre chega tarde agora. Muito tarde e distraída.

-Está falando isso de propósito, Paulinha? Não gosta dela e quer que eu dê um jeito, né?

E Paula queria mesmo. Mas, esperta, mudou de assunto: "A coisa que fez comigo... por que dessa vez foi diferente?"

-Sorte sua que a luz está apagada, menina. Esqueça aquela aparência forte e saudável que eu tinha. Agora estou só couro e osso. Algumas coisas em mim definharam, e outras morreram. Só que de alguma maneira continuo vivo, e cheio de vontades. Faço o que posso pra me saciar, sei que com o tempo vou me acostumar. E você vai me ajudar... né Paulinha?
***

Lá fora, Miriam desceu do carro e se despediu com beijo do parceiro daquela noite. Entrou, jogou os sapatos longe e largou-se no sofá, pensando nas loucuras que aprontou, quando sentiu um cheiro horrível! Pensou em acordar a menina, que na certa não tinha limpado a casa direito, mas estava tão feliz que resolveu ligar pra um dos homens da sua interminável agenda. Esticou-se no sofá, alcançando o aparelho da mesinha de canto, e discou. Antes que a ligação se completasse, porém, uma voz falou com ela:


-Tenho uma coisa que você vai gostar... - e o telefone continuou chamando.

-Quem é? Linha cruzada uma hora dessas da madrugada, ninguém merece...

-Estou no seu quarto.

Miriam soltou o telefone, enfim reconhecendo a voz. "Não pode ser!!!" Tomada pelo maior susto de sua vida, ela olhou para a porta apenas entreaberta do quarto. Era onde estava a arma. Miriam - mulher com sangue frio o suficiente pra matar um homem - criou coragem aos poucos e caminhou na direção do aposento. Segurou a maçaneta como se fosse a tábua de salvação, então puxou-a com força, e trancou a porta por fora!

Ainda com medo, mas sem acreditar no acontecido - afinal, tinha bebido algumas tequilas na balada - ela caminhou com as pernas trêmulas para o banheiro. Jogou bastante água no rosto esperando que a razão voltasse, e abriu o gabinete do espelho. Lá dentro, como que anunciando sua morte, estava o telefone sem fio, e uma luz verde piscava nele, implacável: talk!

Em pânico, Miriam fechou o gabinete. Foi quando teve a última visão de sua vida, refletida no espelho: um corpo-seco, coisa grotesca e magriça - nada mais que pele putrefata sobre osso - estava parado bem atrás dela, rangendo os dentes...




G.S. Lewd

Biografia: GS Lewd - nasceu e mora em São Paulo/SP.



Misterioso, filho da internet por profissão e vampiro por natureza
adotou o pseudônimo Lewd e escreve sobre vampiros eróticos desde 2000

Já teve um conto na antologia de 90 anos do Palmeiras, seu time do
coração, lançou o livro de Sistinas em 2005 e participou por duas
vezes da revista Scarium Megazine. Participou do livro "Visões de São
Paulo", de 2006, ao lado de outros 49 grandes autores, pela Tarja
Editorial. Também fez parte do livro "Vampirus Brasil Collection -
Sedução, fascínio e traição".


Página do Autor no Skoob: http://www.skoob.com.br/autor/1583
Links das referidas obras: http://www.skoob.com.br/autor/livros/1583

Nas redes sociais:






2 comentários:

Deixe seu comentário.